Ministro Schietti destaca necessidade de fundamentação adequada para ordem de prisão
20/11/2016 07:59
 
 
12/04/2019 04:06

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Rogerio Schietti Cruz é presidente da Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça e trabalha diariamente com a análise de habeas corpus, que na maioria das vezes discutem a legalidade de decretos de prisão preventiva.

Em entrevista, o ministro destacou a necessidade de fundamentação adequada das decisões judiciais, especialmente quando interferem na liberdade humana, e ressaltou que o STJ precisa obedecer a limites quando analisa esses pedidos. 

Segundo ele, o tribunal não pode corrigir falhas de fundamentação do juiz para manter o indivíduo preso, ainda que essa prisão possa parecer a coisa certa aos olhos de todo mundo – até mesmo dos próprios ministros.

O cidadão reclama que criminosos são soltos pela Justiça. Como explicar para a sociedade o papel do STJ quando ele concede habeas corpus para uma pessoa acusada de crimes graves?

Schietti - Às vezes temos de soltar uma pessoa que cometeu crimes muito graves, e que o fez de um modo que revela a probabilidade de que esse comportamento criminoso venha a se repetir. Ainda assim, na hora de fundamentar a prisão, o juiz escreve algo totalmente genérico, sem considerar aspectos do caso concreto. A nossa jurisprudência é rígida: a fundamentação tem de ser concreta, com indicação de dados reais do processo e não com alegações genéricas ou abstratas sobre o tema objeto da decisão.

Quais são os principais exemplos da falta de devida fundamentação do decreto prisional?

Schietti - Um dos vícios mais comuns é a decisão lacônica, em que o juiz diz, por exemplo, que a prisão é apenas para garantir a ordem pública, sem explicar o porquê. Ou então uma decisão de dez páginas, que é um modelo pronto, sem acrescentar nada sobre o caso específico analisado, ou seja, é uma decisão longa, mas genérica e abstrata. Outras decisões simplesmente se reportam a termos da lei para justificar a prisão. Exemplo: o crime é hediondo, mas isso, por si só, como já disse o Supremo Tribunal Federal, não é suficiente para justificar a prisão preventiva; é necessário dizer por que aquela pessoa tem de ficar presa cautelarmente. Tem de haver um elemento que evidencie a necessidade da prisão, de acordo com o que determina o Código de Processo Penal.

É preciso dizer algo mais que o óbvio, para que fique claro que o juiz está prendendo porque realmente a pessoa é perigosa. A prisão cautelar é a última medida a utilizar, depois de afastadas todas as outras que poderiam ser aplicadas. No caso da mulher que visita seu marido no presídio levando droga, por exemplo, o juiz pode simplesmente proibi-la de frequentar o presídio, se for só essa a conduta delitiva. São situações que o juiz precisa analisar para ver se a prisão é realmente necessária. Isso dá trabalho, mas o juiz tem de analisar, senão corre-se o risco de chegar um determinado processo aqui e o paciente ser solto, mesmo sendo eventualmente uma pessoa perigosa que deveria estar presa.

O que o STJ pode fazer para ajudar a diminuir os erros de fundamentação?

Schietti - A Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados, a Enfam, dirigida pela ministra Maria Thereza de Assis Moura, vai realizar atividades em 2017 para os mais de 16 mil juízes do país. Pensamos em um trabalho que não seja meramente expositivo: workshops, manuais de orientação sobre decisões judiciais, ensino a distância, encontros periódicos com os juízes etc. Queremos investir nessa área, trabalhar com a motivação das decisões, a partir de casos similares aos que os juízes recebem rotineiramente.

Qual o maior desafio do STJ ao analisar os pedidos de habeas corpus impetrados contra prisão preventiva?

Schietti - A dificuldade que temos ao analisar certos pedidos é que nós não podemos corrigir ou complementar falhas de fundamentação apontadas nos habeas corpus.

O que constatamos muitas vezes é que havia motivos de sobra para decretar a prisão cautelar e o juiz não disse o que deveria ter dito. Essas situações geram um sentimento de impunidade na população, que questiona por que o tribunal soltou uma pessoa que deveria estar presa.

Se o paciente impetra o HC contra uma decisão com vício, não pode o tribunal corrigi-la. Não podemos usar um instrumento de proteção da liberdade para suprir o vício de motivação, em prejuízo do réu paciente. É isso que muitos não entendem. Mas há algo que precisa ficar claro: em várias decisões de concessão de HC, quando percebemos que o vício foi meramente formal, nós deixamos expressamente previsto no acórdão que o juiz pode decretar nova prisão com base em nova fundamentação, desta vez adequada. Acredito que em muitos casos que mandamos soltar, o paciente nem chega a ser solto, porque mesmo sem a ressalva que fazemos o juiz percebe que o erro não é material, mas formal, e decreta nova prisão, corrigindo o vício existente. Isso é importante destacar: muitas vezes, o vício formal é corrigido e não há prejuízo.

Existe uma certa banalização da prisão preventiva no Brasil?

Schietti - Parece que em determinados lugares no Brasil há uma cultura de encarceramento. Não digo que estejam banalizando a prisão preventiva, mas se percebe que em muitos casos nem sequer cogitam de outras medidas cautelares, já vão direto para a prisão preventiva. A reforma feita no Código de Processo Penal em 2011 ainda não passou a integrar a avaliação de todos os juízes. Alguns ainda mantêm o raciocínio, comum no passado, de que a prisão em flagrante é convertida automaticamente em preventiva. Será que precisa mesmo, será que não é possível aplicar as medidas previstas no artigo 319 do CPP?

Como balancear a celeridade exigida pela prestação jurisdicional com a devida fundamentação que é necessária em cada caso?

Schietti - Precisamos considerar que há juízes com jurisdição sobre várias comarcas, num ritmo de trabalho que muitas vezes impede decisões bem fundamentadas. É um problema que não é necessariamente do magistrado, é da estrutura, da falta de gestão da Justiça como um todo, e o réu não tem nada a ver com isso. Temos poucos juízes para 100 milhões de processos no país. Comparado ao de outros países, nenhum juiz julga tanto como o brasileiro.

No fim, todos somos culpados: juízes, Ministério Público, advogados – todos têm uma parcela de culpa. Há uma revolução que tem de ser feita no sistema. O modelo é quase igual há décadas, a Justiça criminal pouco mudou.