Na fase vespertina da audiência pública sobre as penalidades pelo atraso na entrega de imóveis em construção, realizada nesta segunda-feira (27) pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), 13 expositores participaram da discussão de temas como a natureza jurídica das cláusulas penais em contratos de compra e venda e as consequências para os consumidores que decidem adquirir imóveis na planta.
As discussões fornecerão elementos para os ministros da Segunda Seção do tribunal julgarem recursos repetitivos sobre duas controvérsias jurídicas: a cumulação da indenização por lucros cessantes com a cláusula penal (Tema 970) e a possibilidade de inversão desta última contra a construtora (Tema 971), nos casos de atraso na entrega de imóvel em construção. A audiência foi convocada pelo ministro Luis Felipe Salomão, relator dos recursos.
Primeiro a ocupar a tribuna, o defensor público da União Antonio de Maia e Pádua destacou que o desenho tradicionalmente utilizado nos contratos de aquisição imobiliária leva os consumidores a tomarem decisões que lhes são prejudiciais, criando um tipo de “dessacralização do consentimento”. Pádua defendeu a manutenção da jurisprudência do STJ no sentido da possibilidade da cumulação e da inversão da cláusula penal.
Bis in idem
Na sequência, o representante da Câmara Brasileira da Indústria da Construção (CBIC), Sylvio Capanema de Souza, sustentou a natureza jurídica compensatória – e não moratória – da cláusula penal, motivo pela qual a ideia de cumulação com os lucros cessantes representaria verdadeiro bis in idem nos casos de atraso na entrega. “Seria um tipo de enriquecimento ilícito do próprio credor”, apontou o palestrante ao também defender a impossibilidade da inversão da cláusula.
Membro integrante do Instituto Brasileiro de Política e Direito do Consumidor (Brasilcon), a advogada Amanda Flávio de Oliveira lembrou que o prazo de entrega constitui um dos principais fatores tomados em consideração pelo consumidor para decidir pela compra de um imóvel. Segundo ela, em muitos casos, as empresas já imaginam que não vão cumprir os prazos contratuais, mas a perspectiva de lucro tira o “caráter sustentável” da oferta apresentada.
Em nome da Associação Nacional das Defensoras e Defensores Públicos (Anadep), Antonio Carlos Fontes Cintra ressaltou a condição de hipossuficiência de muitos dos consumidores que decidem contratar com as incorporadoras. De acordo com o defensor público, uma grande parte dos compradores se desfaz do imóvel anterior com o objetivo de reunir dinheiro para comprar uma nova residência e, com o atraso, sofre sérias consequências em sua situação de moradia.
Comparações
O economista Gustavo Franco apresentou uma perspectiva de interseção entre os campos jurídico e econômico, destacando a complexidade do mercado imobiliário e a evolução histórica dos contratos de compra e venda de imóveis. Ao citar exemplos dos setores elétrico e de exportações, o economista afirmou que o incorporador imobiliário perde dinheiro quando atrasa a entrega do imóvel, já que é a partir da consolidação da venda que a empresa passa a se recuperar do “movimento negativo” de aporte dos recursos necessários para o empreendimento.
“As duas situações – cumulação e inversão da cláusula penal – são soluções que nós, economistas, definimos como populistas”, apontou o economista.
Em seguida, o representante do Instituto de Defesa do Consumidor (Idec), Walter José Faiad de Moura, rebateu as comparações com outros campos econômicos, como o setor energético, em virtude do contexto jurídico específico do setor imobiliário. Além de defender a paridade das partes nos contratos de compra de imóveis, sustentou a possibilidade de análise, pelo Judiciário, de casos individuais relacionados ao atraso, já que cada empreendimento adota seus próprios fatores de riscos.
Sistema legal
O advogado Daniel Martins Boulos, representante do Insper/SP, afirmou que as discussões travadas na audiência pública estão inseridas em um campo de análise maior, relativa à possibilidade de interferência do Judiciário nas relações contratuais fixadas entre as partes. Segundo o advogado, o sistema legal brasileiro entregou à cláusula penal caráter acessório à cláusula principal e, por isso, não seria possível criar nova cláusula desvinculada da obrigação principal.
“O sistema legal já prevê instrumentos de controle, pelo Judiciário, do exercício da liberdade de contratar. Mas, entre esses instrumentos, não está a possibilidade de criação de cláusulas contratuais”, afirmou o representante do Insper/SP.
Já o representante do Sinduscon/SP, Ricardo de Oliveira Campelo, citou casos concretos relacionados ao mercado imobiliário e ressaltou a necessidade de diferenciação entre os imóveis destinados à moradia e aqueles comprados com o objetivo de investimento, como a locação. Campelo também defendeu o caráter compensatório da multa por atraso.
Falsa dicotomia
Também trazendo exemplos concretos, Alvimar Pio Aparecido Júnior, membro da Comissão de Direito Imobiliário da OAB/PA, afirmou que, em um empreendimento do Pará, a construtora prometeu aos consumidores que eles assistiriam à Copa do Mundo de 2014 em suas novas residências; todavia, mesmo após a Copa de 2018, os compradores ainda não receberam os imóveis.
“Se não fosse uma prática lucrativa, por que haveria a reincidência, por parte das incorporadoras, nesse tipo de conduta?”, ponderou o representante da OAB/PA.
A professora Teresa Alvim, da PUC/SP, criticou a falsa dicotomia mercado versus consumidores, e defendeu uma posição sem privilégios, que concilie interesses. Ela afirmou que certas decisões podem encarecer os imóveis. “As obrigações posteriores favorecem a litigiosidade e encarecem o preço dos imóveis. É preciso uma visão global do problema para termos equilíbrio na relação”, disse.
O economista Eduardo Zylberstajn, da FGV, afirmou que o reflexo das condenações é medido nos preços e afeta os consumidores de baixa renda. “Quanto mais severa a condenação, maior o impacto no preço e maior o reflexo na coletividade. Como os economistas dizem, as consequências sempre vão chegar no preço”, afirmou Zylberstajn, que também atua como pesquisador na Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (Fipe).
Sonhos
A advogada Renata Abalém, da OAB/GO, disse que o impacto do atraso na entrega vai muito além do rompimento de uma simples relação comercial. “Não estamos falando da compra de um produto no supermercado. No caso dos imóveis, é o atraso na entrega de sonhos”, comentou a advogada ao citar casos emblemáticos de atrasos de até nove anos.
Encerrando a audiência, o advogado José Carlos Baptista Puoli, representando o Secovi de São Paulo, lembrou que o atraso por si só gera prejuízos imensos à incorporadora, como encargos financeiros, trabalhistas e de tributos. Ele defendeu que, ao julgar o tema 970, o STJ não admita a cumulação de pedidos, e no tema 971, não seja possível a inversão da cláusula penal.
Leia também:
Especialistas discutem penalidades por atraso na entrega de imóveis