Acompanhando o voto divergente do ministro Paulo de Tarso Sanseverino, a maioria do colegiado concluiu que não há qualquer contradição jurídica entre a lei que anistiou os torturadores, impedindo que sejam responsabilizados penalmente, e a pretensão civil de se declarar a existência de ato ilícito.
No caso julgado, um grupo de ex-presos políticos ajuizou ação meramente declaratória de ocorrência de danos morais (sem pedido de indenização) contra o coronel reformado do Exército Carlos Alberto Brilhante Ustra, comandante do DOI-Codi em São Paulo no período de setembro de 1970 a janeiro de 1974. Sustentaram que o coronel agiu com dolo ao cometer ato ilícito passível de reparação, causando-lhes danos morais e à integridade física.
A ação foi julgada procedente pelo juízo de primeiro grau e mantida pelo Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) em grau de apelação. O militar recorreu ao STJ, alegando, entre outros pontos, que a pretensão estaria prescrita e que não haveria interesse processual em função da Lei da Anistia (Lei 6.683/79).
Para o ministro Paulo de Tarso Sanseverino, a pretensão formulada pelos demandantes está em plena consonância com um Estado Democrático de Direito, que busca resgatar a sua memória acerca de gravíssimos fatos ocorridos no período militar iniciado em 1964. “A recuperação da memória histórica é fundamental para uma nação evitar que essas graves violações aos direitos humanos voltem a ocorrer”, ressaltou em seu voto-vista.
Alegações
Preliminarmente, o ministro afastou a alegação de prescrição, reiterando o entendimento do STJ de que as pretensões reparatórias por violações a direitos humanos consubstanciadas em tortura são imprescritíveis. Também sustentou que a ocorrência de prescrição só pode ser cogitada quando a pretensão é condenatória: “O pedido, aqui, é puramente declaratório e, assim, imprescritível, não havendo falar em violação ao artigo 177 do Código Civil de 1916 ou ao artigo 206, parágrafo 3º, do Código Civil de 2002.”
Sobre a alegada falta de interesse processual em função da Lei da Anistia, o ministro ressaltou que nenhum dos dispositivos desse diploma legal restringe o direito de as vítimas, direta ou indiretamente atingidas pelos fatos ocorridos no período de 1964 a 1985, buscarem a identificação de seus algozes.
“As vítimas e familiares, no entanto, têm plena legitimidade e interesse em responsabilizar o indivíduo que figurou como torturador, mediante o reconhecimento perene pelo estado, através de um de seus poderes instituídos, o Poder Judiciário, da efetiva existência dos fatos e da responsabilidade dos envolvidos”, consignou em seu voto-vista.
De acordo com o ministro, a anistia, na forma como outorgada, afastou a possibilidade de persecução penal dos autores de graves violações a direitos humanos, mas os efeitos cíveis dessas violações remanescem, sendo reiteradamente reconhecidos pela via administrativa e judicial.
“Tanto é assim que o direito às indenizações continua a ser reiteradamente reconhecido, seja na via administrativa, seja na via judicial, revelando-se plenamente hígido, com fundamento em uma interpretação sistemática e teleológica, humanista e democrática, a pretensão declaratória de responsabilidade pelos danos morais advindos de atos de tortura ser formulada individualmente em face daquele que foi beneficiado penalmente pela anistia”, acrescentou.
Comissões
Em seu minucioso voto, Paulo de Tarso Sanseverino também fez um relato histórico sobre a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos e a Comissão Nacional da Verdade, criadas para promover a busca de informações e instrumentos para elucidar as violações contra os direitos humanos ocorridas durante a ditadura militar brasileira.
Para o ministro, as duas iniciativas são importantes para que se reparem os danos, se não materialmente, pelo menos moralmente, apaziguando-se a sensação de impunidade que acorre a quem tem os seus “direitos fundamentais mais caros vilipendiados por agentes do próprio estado”.
Seu voto foi acompanhado pelos ministros Villas Bôas Cueva e Marco Aurélio Bellizze. Ficaram vencidos a ministra Nancy Andrighi (relatora) e o ministro João Otávio de Noronha, que votaram pelo provimento do recurso especial do coronel Ustra.