A duas semanas de completar 30 anos de funcionamento, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) protocolizou na última sexta-feira (22) o habeas corpus de número 500.000 – um pedido formulado contra decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) relacionado a tráfico de drogas.
Instalado em 7 de abril de 1989, o STJ levou 19 anos para chegar ao HC de número 100.000. Para acumular os últimos 100 mil e completar meio milhão de habeas corpus impetrados, foram precisos apenas um ano e dez meses.
Segundo o ministro Rogerio Schietti Cruz, presidente da Terceira Seção (que reúne as duas turmas do STJ especializadas em direito penal), o aumento expressivo do número de habeas corpus é uma tendência difícil de ser revertida, e a marca de meio milhão de impetrações é significativa.
Curiosamente, observou o ministro, “o HC 500 mil aborda o tipo de crime mais comum, o tráfico de drogas, e tem origem no tribunal que mais gera a impetração de HCs, que é o TJSP”.
Na opinião do presidente da Sexta Turma, ministro Nefi Cordeiro, é preciso repensar o sistema para que os recursos com contraditório possam tramitar de forma mais célere. Por outro lado, a marca de 500 mil também demonstra o lado positivo do crescente acesso à Justiça.
“É a concretização da cidadania aos criminalmente processados. Nenhum dano à liberdade, direto ou indireto, pode permitir demora em sua reparação: seja soltando, seja excluindo o ilegal, ainda é o habeas corpus a via rápida e eficaz”, refletiu Nefi Cordeiro.
Momento de reflexão
O ministro Reynaldo Soares da Fonseca, presidente da Quinta Turma, disse que a marca histórica exige uma reflexão.
“O momento é de reflexão dos atores do direito, a fim de que possamos encontrar critérios de racionalização e valorização desse remédio constitucional fundamental ao tecido social”, disse ele.
Segundo o ministro, a existência do habeas corpus garante o exercício do direito fundamental à liberdade e o próprio Estado democrático de direito. Entretanto, alerta Reynaldo Soares da Fonseca, o HC não pode servir de sucedâneo recursal, “nem sua utilização pode enfraquecer a função constitucional principal do STJ, que é dizer o direito infraconstitucional, por meio do julgamento dos recursos especiais”.
Rogerio Schietti Cruz destacou que o Brasil é o país que talvez tenha a maior abrangência quanto à utilização do habeas corpus, prática referendada pela doutrina jurídica.
“Em outros países, o HC é usado especificamente em situações de violação do direito à liberdade. No Brasil, a legislação permite a impetração para questionar uma série de ilegalidades que poderiam ser questionadas por meio de recurso ordinário.”
Atualmente, o HC é normatizado por alguns artigos do Código de Processo Penal (CPP), como o artigo 647, e a jurisprudência dos tribunais tem admitido sua impetração em situações bastante diversas.
Violência e acesso à Justiça
Schietti citou o aumento da violência em geral e do número de presos, a disseminação do tráfico de drogas, a criação de normas legais – como a Lei Maria da Penha –, a digitalização dos processos e a expansão da Defensoria Pública como fatores que ajudam a explicar o número crescente de habeas corpus em todos os tribunais.
O ministro lembrou que o Supremo Tribunal Federal (STF) e o STJ adotaram em 2012 o entendimento de não conhecer de impetrações substitutivas de recurso ordinário, mas essa tentativa de reduzir o número de HCs teve efeito apenas simbólico, que acabou criando decisões paradoxais quando o órgão julgador não conhecia do HC, mas concedia a ordem de ofício para sanar ilegalidades flagrantes.
“Qualquer tentativa de restringir a utilização do habeas corpus não é bem recebida, e outras medidas, como a melhoria na qualidade das decisões judiciais, poderiam colaborar para reduzir o excesso de impetrações”, avaliou.
Lei específica
Em artigo na edição de fevereiro da revista Justiça & Cidadania, Schietti defendeu a edição de uma lei específica para regulamentar o habeas corpus.
“Cremos ser mais acertada a opção por uma lei especial sobre o habeas corpus, na qual se possam fixar parâmetros mais seguros para o manejo dessa ação constitucional, minimizando as oscilações que derivam de uma jurisprudência instável, propícia a subjetivismos e voluntarismos judiciais, algo típico de um país ainda pouco afeito ao sistema de precedentes”, afirmou na ocasião.
Na Câmara dos Deputados, tramita desde 2010 o projeto de lei do novo Código de Processo Penal, o PL 8.045/2010. A proposta teve origem em anteprojeto elaborado por uma comissão de juristas presidida pelo ministro do STJ Hamilton Carvalhido, hoje aposentado. Na primeira versão apresentada ao Congresso, a proposta vinculava o HC às hipóteses de prisão ou ameaça de prisão ilegal, mas houve forte resistência de setores que enxergaram aí uma tentativa de cercear o uso desse instrumento constitucional.
O ministro Nefi Cordeiro ressaltou que, independentemente da reforma que seja feita para regulamentar o habeas corpus, “jamais se poderá permitir que a Justiça seja buscada por meios injustos, que o abuso se faça presente na persecução criminal, que formalidades impeçam a proteção do acusado”, preservando-se a possibilidade de impetração com fins de sanar ilegalidade patente.
Evolução histórica
Nos primeiros 20 anos de atuação, o STJ recebeu pouco mais de 100 mil HCs. Nos últimos dez anos, quase 400 mil foram impetrados, o que demonstra o explosivo crescimento da utilização do remédio constitucional.
Segundo o Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen), a população carcerária brasileira dobrou de 2005 a 2016, passando de 361 mil presos para 726 mil – grande parte deles em situação de prisão provisória. Não é mera coincidência o aumento exponencial de impetrações no STJ.
Para entender o ritmo do crescimento das impetrações, veja abaixo a data de ingresso de nove ações de habeas corpus no STJ. E também o volume de HCs protocolizados no tribunal nos últimos cinco anos.