Para o sistema econômico moderno, que tem as empresas como um de seus principais pilares, o encerramento definitivo de cada negócio representa um pequeno desastre. Quando uma empresa fecha as portas, empregos são perdidos, contratos são encerrados, lojas são desocupadas: a complexa engrenagem de circulação de bens e serviços perde uma de suas peças. A gravidade da situação é multiplicada em países que sofrem com severas flutuações econômicas, a exemplo do Brasil – onde, entre 2012 e 2017, seis em cada dez empresas encerraram suas atividades, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Se o contexto econômico recente já causava grandes impactos negativos nas atividades empresariais, os efeitos da Covid-19 pioraram ainda mais esse quadro: também segundo o IBGE, apenas durante a pandemia, mais de 700 mil empresas brasileiras foram fechadas. Para grande parte delas, o caminho é o pedido judicial de falência – apresentado pelos credores ou pela própria empresa –, momento em que se definem as possibilidades de pagamento das dívidas diante do que resta do patrimônio da sociedade em crise terminal.
Assim como ocorre nos pedidos de recuperação judicial, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) tem papel importante na definição de teses jurídicas sobre a falência, especialmente na interpretação da Lei 11.101/2005 e do normativo anterior, o Decreto 7.661/1945. Os julgamentos que envolvem o encerramento definitivo das atividades empresariais são o tema da série especial De portas fechadas, divulgada neste e no próximo domingo (25).
Segundo alguns doutrinadores, o processo de falência é dividido pela Lei 11.101/2005 em três fases:
Em uma das situações que podem motivar o pedido judicial de falência – a impontualidade do devedor –, a Terceira Turma entendeu que é desnecessário o prévio ajuizamento de execução forçada para se requerer a decretação da quebra.
Segundo o relator do recurso, ministro Paulo de Tarso Sanseverino, a Lei 11.101/2005 estabeleceu a impontualidade e a execução forçada como hipóteses autônomas de falência, de acordo com o previsto no artigo 94, incisos I e II, não havendo o condicionamento de uma situação à outra (REsp 1.354.776).
Já no REsp 1.433.652, a Quarta Turma definiu que, nas hipóteses de pedido de falência com fundamento na impontualidade injustificada, não é necessária a demonstração da insolvência do devedor, independentemente de sua condição econômica.
A tese foi definida em recurso no qual uma indústria pedia a falência de uma rede de lojas após o não pagamento de nove duplicatas mercantis. Na ação, a rede contestou o pedido e realizou o depósito elisivo da falência (artigo 98, parágrafo único, da Lei 11.101/2005).
Relator do recurso, o ministro Luis Felipe Salomão explicou que os dois sistemas de execução por concurso universal existentes no direito brasileiro – insolvência civil e falência – se distinguem, entre outros fatores, pela concepção do que seja o estado de insolvência em cada hipótese.
Segundo o ministro, o processo de insolvência civil está apoiado no pressuposto da insolvência econômica, consistente na presença de ativo deficitário para fazer frente ao passivo do devedor, nos termos do artigo 748 do Código de Processo Civil.
Por outro lado, de acordo com Salomão, a insolvência que autoriza a decretação de falência é presumida, "uma vez que a lei decanta a insolvência econômica de atos caracterizadores da insolvência jurídica, pois presume-se que o empresário individual ou a sociedade empresária que se encontram em uma das situações apontadas pela norma estão em estado pré-falimentar".
Para o relator, ao realizar o depósito elisivo da falência, elimina-se o estado de insolvência presumida, de modo que a decretação da falência fica afastada; todavia – explicou –, o processo se converte em verdadeiro rito de cobrança, pois permanecem questões relativas à existência e à exigibilidade da dívida cobrada.
Em relação à legitimidade das empresas falidas, a Primeira Seção, sob o rito dos recursos especiais repetitivos (Tema 702) e no âmbito de ação fiscal, estabeleceu a tese de que a mera decretação da quebra não implica a extinção da personalidade jurídica do estabelecimento empresarial.
De acordo com o relator, ministro Napoleão Nunes Maia Filho, por meio da ação falimentar é instaurado o processo judicial de concurso de credores, no qual será realizado o ativo e liquidado o passivo, para que, depois de confirmados os requisitos legais, seja promovida a extinção da personalidade da empresa.
"A massa falida, como se sabe, não detém personalidade jurídica, mas personalidade judiciária – isto é, atributo que permite a participação nos processos instaurados pela empresa, ou contra ela, no Poder Judiciário", afirmou.
Nesse sentido, em seu voto, o ministro comentou que seria equivocada a compreensão de que a retificação da identificação do polo processual – com o propósito de fazer constar a informação de que a parte executada se encontra em estado falimentar – resultaria em modificação ou substituição do polo passivo da ação fiscal (REsp 1.372.243).
Ainda no tocante à legitimidade, a Quarta Turma estabeleceu que, até o encerramento da liquidação, a sociedade falida está apta para agir em juízo. Para o colegiado, a empresa não é automaticamente extinta com a decretação da falência.
Segundo o ministro Antonio Carlos Ferreira, nos termos do Decreto-Lei 7.661/1945, a decretação da falência não resulta na extinção da pessoa jurídica, mas apenas impõe ao falido a perda do direito de administrar seus bens e deles dispor, conferindo ao síndico a representação judicial da massa.
O ministro explicou que, na ação de falência, ocorre a repartição da personalidade jurídica, apartando-se o patrimônio – que constitui a massa, ente despersonalizado – da sociedade falida. Assim – destacou –, a pessoa jurídica falida ainda pode praticar diversos atos, como participar na condição de assistente nas ações em que a empresa for parte ou interessada e requerer a continuação do negócio no processo falimentar (REsp 1.265.548).
No REsp 1.639.940, a Terceira Turma definiu que a empresa falida, embora possa requerer providências para a conservação dos seus direitos, não é parte legítima para interpor recurso contra decisão que decreta a indisponibilidade de bens pertencentes a seus sócios.
O mesmo colegiado, no REsp 1.126.521, concluiu que o grupo empresarial falido possui capacidade para propor ação rescisória com o objetivo de desconstituir a sentença transitada em julgado que decretou a sua falência.
"Trata-se aqui de uma ação de status pessoal. Ele é falido e quer reverter a situação. Ele quer dizer: eu não devo ou não mereço ser falido, pois houve uma violação. A rigor, só ele pode fazer isso; ele não está defendendo os bens da massa, os bens da sociedade, ele está defendendo o próprio nome. O status dele é que sofreu uma alteração com a quebra", explicou no julgamento o autor do voto vencedor, ministro João Otávio de Noronha.
Sob o regime dos recursos repetitivos (Tema 976), a Primeira Seção fixou que a competência para processar e julgar demandas cíveis com pedidos ilíquidos contra a massa falida, quando em litisconsórcio passivo com pessoa jurídica de direito público, é do juízo cível no qual for proposta a ação de conhecimento, competente para julgar ações contra a Fazenda Pública (REsp 1.643.856).
Já em julgamento de conflito de competência, no âmbito do direito privado, a Segunda Seção entendeu que é de competência do juízo que conduz o processo falimentar decidir sobre as garantias dadas pela empresa falida a sociedade em recuperação judicial.
A controvérsia analisada pela seção dizia respeito a bens dados por uma empresa de serviços como garantia da execução de contrato com empresa de energia renovável. Em razão do descumprimento de obrigações pela prestadora de serviços, o caso foi submetido ao procedimento de arbitragem, no qual se chegou a um acordo – que também foi descumprido.
Posteriormente, a empresa de energia renovável entrou em recuperação judicial na Justiça estadual de São Paulo – que não liberava os bens por entender que competiria a ela decidir sobre o mérito do descumprimento contratual –, enquanto a prestadora de serviços requereu sua autofalência em juízo do Ceará – que afirmava que os bens dados em garantia eram de propriedade da massa falida.
Segundo o relator do conflito, ministro Antonio Carlos Ferreira, o artigo 6º, caput e parágrafo 1º, da Lei 11.101/2005 prevê que a decretação da falência suspende o curso de todas as ações e execuções contra o devedor, prosseguindo a ação que demandar quantia ilíquida no juízo em que estiver sendo processada.
O relator explicou que, caso o juízo arbitral reconheça que a empresa falida é devedora de algum valor à sociedade que postula os bens dados em garantia, haverá a formação de crédito em favor da empresa credora, a ser habilitado na falência, para fins de execução concursal.
Se a suposta credora discordar da decisão do juízo da falência quanto ao destino dos bens dados em garantia, "deve fazer uso dos recursos cabíveis nos autos do processo falimentar", finalizou o ministro ao definir a competência do juízo falimentar (CC 166.591).
No tópico das responsabilidades que permeiam as ações de falência, a Quarta Turma estabeleceu no REsp 1.487.042 que o síndico – administrador nomeado pela Justiça para gerir a massa falida – é responsável pela prestação de contas ao juízo a partir do momento de sua nomeação, incluídos os atos realizados pelo gerente durante a continuidade dos negócios empresariais.
Também em relação ao administrador judicial, no REsp 1.526.790, a Terceira Turma considerou ser possível impor ao credor que requereu a falência da empresa a obrigação de adiantar as despesas relativas à remuneração de quem exerce essa função, quando a pessoa jurídica não for localizada.
No caso analisado, houve a citação da empresa por edital e, posteriormente, a decretação da falência. Entretanto, o credor que solicitou a falência argumentou que não poderia recair sobre ele o adiantamento da remuneração do administrador, já que esse ônus seria da massa falida.
Relator do recurso, o ministro Villas Bôas Cueva apontou que, além de a empresa não ter sido localizada, havia dúvida sobre a possibilidade de não serem arrecadados bens suficientes para a remuneração do administrador judicial – função que, segundo o ministro, auxilia o juiz na condução do processo falimentar e, por isso, não pode ser exercida de forma gratuita.
"Impõe-se ressaltar que, prosseguindo a ação e arrecadando-se bens suficientes para a remuneração do administrador, a massa falida deverá restituir o valor despendido pelo autor antecipadamente", enfatizou o ministro.
Em outro processo, a Terceira Turma definiu que a decretação de falência do locatário, sem a denúncia da locação, não altera a responsabilidade dos fiadores perante o locador.
Segundo a ministra Nancy Andrighi, o artigo 119 da Lei 11.101/2005 dispõe expressamente que a falência do locador não resolve o contrato de locação e, na falência do locatário, o administrador judicial poderia denunciar o contrato de locação a qualquer tempo. "Dessa forma, os fiadores permanecem vinculados ao contrato de locação, mesmo com a decretação de falência do locatário", apontou a ministra (REsp 1.634.048).
A publicação Bibliografias Selecionadas, da Biblioteca Ministro Oscar Saraiva, traz, periodicamente, referências de livros, artigos de periódicos, legislação, notícias de portais especializados e outras mídias sobre temas relevantes para o STJ e para a sociedade – muitos deles com texto integral.
Leia a edição sobre Falência e Recuperação Judicial, publicada em setembro de 2019.