Consagrado na Constituição de 1988, o pacto federativo preza a autonomia dos entes federados, dentro das regras e dos princípios constitucionais. Excepcionalmente, situações fora do normal podem justificar a intervenção federal, prevista no artigo 34 da Carta de 1988.
A intervenção pode decorrer, por exemplo, de problemas de natureza financeira ou quadros de grave comprometimento da ordem pública, entre outras hipóteses. Em 2018, o Brasil vivenciou duas dessas intervenções: uma no Rio de Janeiro, em razão do colapso da segurança pública, e outra em Roraima, em virtude da situação das finanças estaduais.
Quando o motivo da intervenção é desobediência a ordem ou decisão judicial, a medida – decretada pelo presidente da República – pode ser requisitada pelo Supremo Tribunal Federal (STF), pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) ou pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE).
Diante da inexecução de ordem ou decisão judicial, o STJ analisa a hipótese de intervenção de ofício, ou mediante pedido do presidente do Tribunal de Justiça do estado, ou do presidente de tribunal federal, com ressalva, conforme a matéria, da competência do STF ou do TSE.
O STF já se pronunciou sobre a divisão de competência para julgar pedidos de intervenção entre a própria corte, STJ e o TSE. No pedido de Intervenção Federal (IF) 2.792, o ministro Marco Aurélio Mello afirmou que a competência é definida pela matéria, "cumprindo ao STF o julgamento quando o ato inobservado lastreia-se na Constituição Federal; ao STJ, quando envolvida matéria legal, e ao TSE, em se tratando de matéria de índole eleitoral".
A jurisprudência do STJ no tema foi construída sobre um limitado número de julgados, tendo em vista a excepcionalidade da medida. Desde a sua instalação, em 1989, até maio de 2022, apenas 121 casos dessa natureza chegaram à corte.
O texto original da Constituição atribuía ao STJ a competência para analisar ##representação## do procurador-geral da República para intervenção federal em caso de recusa à execução de leis federais, mas a reforma do Judiciário (Emenda Constitucional 45, de 2004) transferiu ao STF essa responsabilidade.
Desde então, no STJ, os julgamentos sobre intervenção se limitam à hipótese de descumprimento de decisões judiciais – frequentemente relacionadas a conflitos fundiários. A avaliação desses processos exige do Tribunal da Cidadania uma ponderação delicada entre o direito de propriedade e a questão social.
Na IF 92, a medida foi pedida em razão do descumprimento de uma ordem da Justiça pelo Poder Executivo de Mato Grosso. O juízo da Vara de Falências e Concordatas de Goiânia expediu ordem de reintegração de posse de uma área de mais de 492 mil m² situada em Mato Grosso. Em 2005, época dos fatos, mais de mil famílias moravam no local, conhecido como Bairro Renascer.
O então governador de Mato Grosso, Blairo Maggi, anunciou que não enviaria forças policiais para desocupar a área. A massa falida da empresa proprietária das terras requereu a intervenção federal perante a Justiça do estado, para que a ordem fosse cumprida, e o pedido foi enviado ao STJ.
Relator do caso na Corte Especial do STJ, o ministro Fernando Gonçalves (hoje aposentado) disse que a solução deveria ter por base o princípio da proporcionalidade. "O caso encerra, a toda evidência, um conflito de valores ou, em outras palavras, a ponderação de direitos fundamentais. De um lado, o direito à vida, à liberdade, à inviolabilidade domiciliar e à própria dignidade da pessoa humana, princípio fundamental da República Federativa do Brasil. De outro, o direito à propriedade", resumiu.
O ministro afirmou que o cumprimento da ordem judicial de reintegração de posse, para satisfazer o interesse de uma empresa, se daria à custa de graves danos à esfera privada de milhares de pessoas.
"A desocupação da área à força não acabará bem, sendo muito provável a ocorrência de vítimas fatais. Uma ordem judicial não pode valer uma vida humana. Na ponderação entre a vida e a propriedade, a primeira deve se sobrepor", declarou.
No voto acompanhado pela maioria da Corte Especial, Gonçalves destacou que o uso da força policial seria inadequado, pois havia outros meios de contemplar o direito de propriedade da empresa – por exemplo, a desapropriação ou a indenização de perdas e danos.
No parecer sobre o caso, o Ministério Público Federal observou que a Constituição, apesar de dizer que a intervenção dependerá de requisição do STF, do STJ ou do TSE, "não diz que estes são obrigados a requisitar sem antes fazer um juízo de conveniência em face do interesse social".
Ao acompanhar o voto do relator, o ministro Luiz Fux (hoje no STF) lembrou que a tradição do tribunal era deferir as intervenções, mas o caso em julgamento exigia uma reflexão especial sobre a conveniência da medida.
"Nesse lapidar voto do Fernando Gonçalves, absolutamente irrespondível, dá-se a essa questão judicial uma solução que hoje é exigida por um novo momento da ciência jurídica, que é o momento do pós-positivismo, no qual se impõe a valoração dos interesses em jogo", disse o magistrado.
Em 2014, ao julgar a IF 111, os ministros da Corte Especial analisaram um caso de reintegração de posse que envolvia integrantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST). O tribunal seguiu a mesma linha de entendimento: o pedido foi indeferido com base no princípio da proporcionalidade.
Segundo o processo, o imóvel rural em questão, localizado em Barbosa Ferraz (PR), foi invadido em 2006 por membros do MST, com o objetivo de forçar sua desapropriação para reforma agrária.
O juízo de primeira instância, ao receber laudo segundo o qual a propriedade era produtiva, deferiu liminar de reintegração de posse. Após tentativas frustradas de cumprimento da decisão, uma nova liminar foi deferida, com imposição de multa ao governador do estado caso a reintegração não fosse efetuada. A sentença confirmou a liminar e manteve a multa, mas as sucessivas requisições de força policial não tiveram sucesso.
Diferentemente do que ocorreu na IF 92, o MPF se manifestou a favor da intervenção, pois considerou que o Poder Executivo estadual não tomou providências para superar o problema nem apresentou justificativa plausível para o não cumprimento da decisão.
Em jogo no STJ, estava o destino das 56 famílias que ocupavam a fazenda. Ao examinar o caso, o relator, ministro Gilson Dipp (hoje aposentado), afirmou a competência do tribunal para julgar a matéria, uma vez que a decisão judicial em questão "resume-se de maneira exclusiva à aplicação da legislação infraconstitucional".
No mérito, Gilson Dipp analisou a argumentação do Estado do Paraná, segundo a qual não haveria desobediência, uma vez que o cumprimento da ordem poderia provocar conflito social e danos muito mais graves do que o prejuízo do particular que perdeu a posse.
"Mesmo tendo presente a finalidade de garantia da autoridade da decisão judicial, a intervenção federal postulada perde a intensidade de sua razão constitucional ao gerar ambiente de insegurança e intranquilidade, em contraste com os fins da atividade jurisdicional, que se caracteriza pela formulação de juízos voltados à paz social e à proteção de direitos", registrou o ministro ao justificar a rejeição do pedido de intervenção.
Para Gilson Dipp, ao Estado não restava alternativa senão "respeitar a afetação pública do imóvel produzida pela ocupação de terceiros sobre o bem particular com o intuito de ocupá-lo para distribuí-lo". Como a propriedade não foi caracterizada como improdutiva (para permitir a desapropriação para reforma agrária) nem atendia aos requisitos da Lei 4.132/1962 (para a desapropriação por interesse social), o ministro aventou a possibilidade de desapropriação indireta.
"Aparentemente cuida-se de caso de afetação por interesse público a submeter-se então ao regime próprio dessa modalidade jurisprudencial de perda e aquisição da propriedade, mediante justa e prévia indenização em dinheiro, que, no caso, por construção, se resolverá em reparação a ser buscada via ação de indenização (desapropriação indireta) promovida pelo interessado", concluiu.
Naquele julgamento, Gilson Dipp informou que, em consulta ao Ministério da Justiça e à Presidência da República, não obteve informações sobre o atendimento às requisições anteriores de intervenção federal feitas pelo STJ em situações semelhantes, relacionadas à recusa de força policial para cumprimento de ordens judiciais.
Citando obra do ministro do STF Ricardo Lewandowski, Dipp comentou que a atuação do presidente da República diante de requisição do Judiciário para intervenção destinada a fazer cumprir ordem judicial tem caráter obrigatório, mas, na essência, é ato político incluído no exercício do poder discricionário. "Quer dizer, a despeito de obrigatória a execução da intervenção pelo presidente, a sua omissão, de modo geral, confirma a recusa sem maiores consequências no processo", assinalou o relator.
Na análise da IF 109, a Corte Especial seguiu outra orientação, tendo em vista as particularidades do caso. O conflito fundiário, relativo a uma fazenda também localizada no Paraná, envolvia, mais uma vez, o MST e os proprietários.
A relatora, ministra Nancy Andrighi, destacou que o estado do Paraná, naquela época, tinha uma política pública de apenas dar cumprimento a ordens de reintegração de posse por via pacífica, o que gerou a existência de mais de 400 processos nos quais a decisão não foi cumprida.
"A situação torna-se especialmente grave pelas informações contidas nos autos, de que multas diárias vêm sendo aplicadas a agentes públicos a quem não incumbe, ao menos de maneira direta, a formulação dessa política pública, inclusive com penhora de bens para alienação judicial", detalhou a ministra.
Nesse processo, o governo estadual informou sobre reiteradas promessas do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) de indicar terras para onde os invasores deveriam ser transferidos, mas, ao longo de cinco anos, tais terras não foram alocadas.
Nancy Andrighi afirmou que a desocupação de imóveis rurais deve ser feita de forma pacífica, sendo importante a participação do Incra para a destinação de uma nova área aos trabalhadores, bem como a do estado, para dar apoio.
Entretanto, destacou a relatora, não se poderia colocar nos ombros dos proprietários – que já aguardavam o cumprimento da ordem por mais de seis anos – o ônus de toda a desigualdade social do país.
"Se há ônus a ser suportado pela necessidade de melhor distribuição de terra, esse é um ônus de toda a sociedade, que, em conjunto, deve com ele arcar mediante a atuação eficiente das instituições constituídas. Não se pode, sob o fundamento de que é necessário encontrar uma área para alocar os trabalhadores que invadiram o bem, corroborar por mais de seis anos uma invasão à propriedade particular", fundamentou.
Ao justificar o deferimento da intervenção, Nancy Andrighi rejeitou o argumento do governo estadual de que a solução a ser dada deveria ser a mesma da IF 92, tendo em vista a colisão de princípios.
"No processo sob julgamento, contudo, o que se verifica é o reiterado descumprimento de ordens judiciais por uma opção política. A situação está se agravando no estado do Paraná, não por força de particularidades da questão social – que é semelhante em todo o país –, mas pela potencialização dos conflitos gerada pela inação governamental", justificou a ministra, para quem não se poderia fazer de conta que a decisão judicial de reintegração de posse não existia.
Nesse caso, além de deferir a intervenção, os ministros remeteram o processo ao Ministério Público Federal para ser avaliada a eventual existência de crime de responsabilidade por parte das autoridades públicas envolvidas na omissão.
Pouco tempo depois, ao analisar e deferir o pedido na IF 115, o ministro Herman Benjamin disse que "a recalcitrância do Executivo paranaense no cumprimento das decisões judiciais questiona e enfraquece o Poder Judiciário, cujas decisões gozam de coercibilidade no intuito de promover a paz social e viabilizar a vida em sociedade".
O ministro lembrou que, na demanda analisada, apenas cinco pessoas ocupavam o imóvel rural e, além disso, a questão social "não mais pode servir de escudo para o descuido no cumprimento de decisões judiciais, uma vez que, passados cerca de nove anos após a liminar, ainda não se tem a mínima previsibilidade de seu cumprimento".