Ainda que a estabilidade esteja garantida na Constituição de 1988, a própria Carta Magna e a legislação infraconstitucional possuem uma série de mecanismos para permitir que – tanto quanto o trabalhador da iniciativa privada – o servidor público responda pelas condutas inapropriadas ou ilegais, e mesmo que seja demitido em certos casos.
No exercício do poder administrativo disciplinar, o Executivo, só em 2018, puniu mais de 600 agentes públicos federais com penas de demissão, cassação de aposentadoria e destituição de cargo comissionado, em razão de atividades contrárias ao Regime Jurídico dos Servidores (Lei 8.112/1990). Segundo a Controladoria-Geral da União, as demissões alcançaram cerca de 500 servidores efetivos.
O artigo 41 da Constituição prevê que o servidor estável poderá perder o cargo em virtude de sentença judicial transitada em julgado, processo administrativo em que lhe seja assegurada ampla defesa e mediante procedimento de avaliação periódica de desempenho.
Por sua vez, a Lei 8.112/1990 prevê a sanção de demissão para condutas como improbidade administrativa, insubordinação grave em serviço e abandono de cargo. Enquanto as transgressões consideradas mais brandas podem ser averiguadas por meio de sindicância, o Regime Jurídico dos Servidores prescreve que, para a apuração das infrações funcionais graves, o instrumento é o processo administrativo disciplinar (PAD).
Concebido para apurar a responsabilidade de servidor por infração praticada no exercício de suas atribuições ou por práticas que tenham relação com as funções do cargo, o PAD possui uma série de etapas, que vão desde a apuração do fato ou conduta irregular até o julgamento pela autoridade administrativa competente.
Apesar de contar com uma descrição pormenorizada na Lei 8.112/1990 – de forma subsidiária, a Lei 9.784/1999 também pode ser aplicada –, o PAD está sujeito a muitas controvérsias, várias das quais acabam judicializadas e chegam ao Superior Tribunal de Justiça (STJ). Os entendimentos do tribunal sobre o processo administrativo disciplinar são o tema da reportagem especial O servidor e o PAD, que o STJ publica em duas partes – neste domingo e no próximo. A primeira trata das fases iniciais do processo, até a formação da comissão disciplinar.
De acordo com o artigo 151 da Lei 8.112/1990, o processo administrativo disciplinar possui, basicamente, as seguintes fases:
A instauração de um PAD depende da existência de investigação prévia ou de denúncia que aponte o cometimento de alguma irregularidade pelo servidor. De acordo com a Súmula 611, editada pela Primeira Seção em 2018, é permitida a instauração do processo com base em denúncia anônima, desde que devidamente motivada e com amparo em investigação ou sindicância.
Em uma das ações que deram origem à súmula, o servidor demitido alegou que a denúncia anônima violaria o artigo 144 da Lei 8.112/1990, que dispõe que as denúncias sobre irregularidades devem ser apuradas, desde que contenham a identificação e o endereço do denunciante e sejam formuladas por escrito, confirmada a autenticidade.
O ministro Mauro Campbell Marques explicou que a legalidade na instauração de PAD com fundamento em denúncia anônima tem correlação com o poder-dever de autotutela imposto à administração. De acordo com o artigo 143 do estatuto dos servidores federais, a autoridade que tiver ciência de irregularidade no serviço público é obrigada a promover a sua apuração imediata, mediante sindicância ou PAD.
No caso dos autos, o relator destacou que houve representação criminal contra o servidor por prática de lesão corporal, além de notícia sobre a possibilidade de envolvimento dele em atividade comercial paralela – prática vedada pelo artigo 177, inciso X, da Lei 8.112/1990. Com base nesses elementos, ressaltou o ministro, foram instaurados uma sindicância e, posteriormente, o processo administrativo.
"Não há que se falar em nulidade da sindicância ou do processo administrativo, especialmente porque a denúncia foi acompanhada de outros elementos de prova que denotariam a conduta do recorrente", afirmou o ministro (RMS 44.298).
Em 2019, a Primeira Seção editou a Súmula 635, segundo a qual os prazos prescricionais previstos no artigo 142 da Lei 8.112/1990 têm início na data em que a autoridade competente para a abertura do PAD toma conhecimento do fato, são interrompidos com o primeiro ato de instauração válido da sindicância de caráter punitivo ou do processo disciplinar e voltam a correr após decorridos 140 dias da interrupção.
De acordo com o artigo 142, a ação disciplinar prescreve em cinco anos, no caso de infrações puníveis com demissão, cassação de aposentadoria ou disponibilidade e destituição de cargo em comissão; em dois anos, quanto à sanção de suspensão; e em 180 dias, nos casos puníveis com advertência.
Ao analisar um dos recursos que deram origem à súmula, relativo a processo administrativo que culminou na cassação de aposentadoria de servidor, o ministro Gurgel de Faria explicou que as irregularidades apuradas no PAD se tornaram conhecidas em maio de 2009.
Iniciada a contagem do prazo prescricional – explicou o relator –, ele é interrompido com a publicação do primeiro ato instrutório válido – seja a abertura de sindicância, seja a instauração do PAD –, que, no caso, ocorreu em novembro de 2009.
Entretanto, ponderou, essa interrupção não é definitiva, tendo em vista que, após 140 dias (prazo máximo para conclusão e julgamento do PAD), o prazo recomeça a correr por inteiro, de acordo com regra estabelecida no artigo 142, parágrafo 4º, da Lei 8.112/1990 – o que, na hipótese dos autos, ocorreu em abril de 2010. Por isso, considerando o prazo prescricional de cinco anos para as ações puníveis com cassação de aposentadoria, o ministro apontou que os atos do PAD poderiam ter ocorrido até abril de 2015.
"Assim, há de ser afastada a alegação da prescrição punitiva da administração, uma vez que a portaria que cassou a aposentadoria do impetrante com restrição de retorno ao serviço público federal foi publicada em 26/02/2015", concluiu o ministro (MS 21.669).
No caso de servidores que tenham sido cedidos, a Corte Especial definiu que a instauração do PAD deve acontecer, preferencialmente, no órgão em que tenha sido praticada a suposta infração. Entretanto, se chegar ao fim o prazo de cessão e o servidor tiver retornado ao órgão de origem, o julgamento e a eventual aplicação de sanção só poderão ocorrer no órgão ao qual o servidor público efetivo estiver vinculado.
A tese foi firmada no caso de um servidor cedido para ocupar cargo em comissão em outro órgão. Com base em comunicação do Tribunal de Contas da União, a comissão processante do órgão em que atuava o servidor conduziu o PAD e, ao final, concluiu pela sua responsabilidade. O presidente do órgão concordou com a conclusão da comissão e decidiu pela pena de suspensão por 60 dias, expedindo ofício ao órgão cedente para que editasse o ato punitivo.
Por meio de mandado de segurança, o servidor alegou que teria sido usurpada a competência funcional do chefe do órgão de origem, conforme os artigos 141 e 167 da Lei 8.112/1990.
O ministro João Otávio de Noronha lembrou que todo o trâmite do processo disciplinar ocorreu quando o prazo de cessão do servidor havia terminado e ele já tinha retornado ao órgão de origem.
Nesse caso, segundo o ministro, é providência absolutamente correta a apuração da suposta irregularidade pela comissão processante instaurada no órgão cessionário, tendo em vista que os fatos ocorreram durante o período em que o servidor desempenhou suas atividades no local.
Entretanto, o ministro Noronha entendeu que, após a conclusão da apuração, os autos deveriam ter sido encaminhados à chefia do órgão cedente para julgamento do servidor e eventual aplicação de penalidade, já que ele era vinculado ao seu quadro de pessoal.
"Cessada, assim, toda relação do servidor com o órgão cessionário, é natural que qualquer aplicação de penalidade se dê pelo órgão cedente", afirmou o ministro, acrescentando que "a autoridade competente para julgar o feito e aplicar eventual sanção só pode ser o superior hierárquico do órgão ao qual se acha vinculado".
Acompanhando o entendimento do ministro, o colegiado determinou o encaminhamento do PAD ao órgão cedente para julgamento, inclusive com o aproveitamento das provas produzidas (MS 21.991).
Os procedimentos de apuração das condutas consideradas indevidas têm início efetivo com a formação da comissão processante, que, de acordo com o artigo 149 da Lei 8.112/1990, deve ser composta por três servidores estáveis designados pela autoridade competente. Um dos integrantes será o presidente da comissão, que deve ser ocupante de cargo efetivo superior ou do mesmo nível do servidor investigado, ou ter nível de escolaridade igual ou superior ao indiciado.
No MS 21.773, a Primeira Seção entendeu que a imparcialidade de membro de comissão não fica prejudicada apenas porque ele compôs mais de um colegiado processante instituído para apuração de fatos distintos que envolvam o mesmo servidor.
A tese foi fixada na análise de PAD que aplicou a penalidade de demissão a um ex-reitor de universidade federal, por concluir que ele se valeu do cargo que ocupava para destinar recursos públicos a particulares sem licitação.
Para a defesa, deveria ser reconhecida a falta de imparcialidade de duas pessoas que integraram a comissão processante, já que uma delas participou da elaboração de termo de indiciamento do ex-reitor em um PAD diferente, e a outra presidiu uma segunda comissão contra o mesmo servidor.
O relator do mandado de segurança, ministro Benedito Gonçalves, apontou que a participação dos servidores em comissões que apuraram fatos distintos do PAD em análise não os torna suspeitos ou impedidos. Na verdade, disse o ministro, a ciência prévia dos fatos que torna a autoridade suspeita é aquela verificada quando o membro da comissão participa da fase de sindicância – o que não foi comprovado nos autos.
"A participação de servidor público em mais de uma comissão processante contra o mesmo acusado não ofende os artigos 150 da Lei 8.112/1990 e 18 e 20 da Lei 9.784/1999, ainda que os fatos investigados por uma guardem correlação ou sejam citados em outras", afirmou o ministro ao negar o mandado de segurança.
A Primeira Seção entende ser possível a substituição de membros da comissão processante no curso do PAD. Em 2018, o colegiado aplicou a tese ao examinar um processo disciplinar contra policial rodoviário federal acusado de receber propina de motoristas no Rio de Janeiro. Segundo o servidor, houve violação do princípio da identidade física do juiz, pois o superintendente regional teria nomeado uma policial estranha aos autos para apresentar uma nova análise do processo.
A relatora do mandado de segurança, ministra Regina Helena Costa, explicou que a primeira substituição de membros da comissão processante ocorreu em razão de impedimento declarado por um dos servidores; a segunda alteração foi motivada por suspeição suscitada pelo próprio investigado; e uma terceira modificação foi necessária porque um dos servidores do grupo tomou posse em cargo público inacumulável.
"Nesse contexto, constato a higidez do processo administrativo disciplinar em análise, porquanto, na linha da jurisprudência desta corte, é possível a substituição de membros da comissão processante, desde que respeitados, quanto aos membros designados, os requisitos insculpidos no artigo 149 da Lei 8.112/1990" – requisitos que, segundo a ministra, foram atendidos no caso (MS 21.898).
Em outra discussão que envolveu o princípio do juiz natural, a Primeira Seção concluiu que também é possível a designação, para a comissão processante, de servidores lotados em órgão diferente daquele em que atua o servidor investigado.
A questão foi levantada por ex-servidor da Agência Brasileira de Inteligência (Abin) que contestou a participação de servidor estranho aos quadros da agência como presidente do PAD instaurado para apurar abandono de cargo. Ao final do processo, o servidor foi demitido.
No voto, acompanhado pela maioria do colegiado, a ministra Assusete Magalhães esclareceu que a lei exige que os membros da comissão processante sejam servidores estáveis no serviço público, mas não veda a participação de quem esteja lotado em outro órgão.
"No caso, sendo o presidente da comissão processante analista de finanças e controle, servidor estável da Controladoria-Geral da União, integrando a comissão também um oficial de inteligência da Abin, igualmente estável, improcede a alegação de violação do princípio do juiz natural", apontou a ministra ao confirmar a validade do PAD (MS 17.796).
Nos casos em que as investigações do PAD acabam ganhando os holofotes públicos, o STJ já decidiu que declarações prestadas à mídia por autoridade pública sobre irregularidades cometidas por seus subordinados não geram a nulidade do processo.
O entendimento foi aplicado pela Terceira Seção em julgamento de policial rodoviário federal demitido após processo administrativo instaurado para investigar práticas de liberação irregular de veículos, corrupção e facilitação da circulação de automóveis em situação irregular.
Segundo o servidor, no momento da deflagração da operação policial que investigou os crimes, o corregedor-geral da Polícia Rodoviária Federal emitiu juízo de valor e fez um pré-julgamento contra ele e outros policiais investigados. Para o servidor, essa conduta violou a isenção da autoridade para nomear a comissão que ficaria a cargo das apurações administrativas.
Entretanto, de acordo com o ministro Rogerio Schietti Cruz, a defesa do servidor se limitou a juntar aos autos matérias publicadas na internet sobre declarações da autoridade a respeito dos resultados da operação policial.
No entendimento do ministro, esse procedimento da autoridade é "absolutamente normal em função do cargo que exercia à época, em nome da transparência e publicidade da atuação estatal, de interesse de toda a coletividade" (MS 12.803).
A reportagem O servidor e o PAD continua no próximo domingo, com a apresentação de casos sobre a produção de provas no processo administrativo e a fase de julgamento da ação disciplinar.
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