O ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ) Gilson Dipp deixa o serviço público mas mantém os olhos sobre o Judiciário, com um “conhecimento epidérmico” da realidade deste poder. Ele dedicou 25 anos à magistratura – 16 dos quais no Tribunal da Cidadania. Penalista, Dipp é lembrado pelo rigor de suas decisões, a cordialidade no tratamento com as pessoas e a habilidade em conciliar opiniões. No próximo dia 1º de outubro, ele completa 70 anos, data limite para a aposentadoria.
O ministro acredita que esteja deixando o STJ no momento certo, mas garante que tem um caminho ainda a trilhar – embora sem um rumo definido. “Exercer alguma outra atividade no plano acadêmico ou internacional, tudo é possível, mas não tenho nenhum plano para o futuro”, diz.
Nos últimos dois anos, ele dedicou-se à vice-presidência do STJ e do Conselho da Justiça Federal (CJF). Dipp ocupava novamente, desde o início deste mês, uma cadeira na Quinta Turma e na Terceira Seção, órgãos que integrou desde sua posse no STJ e que chegou a presidir.
Juiz por acaso
Gaúcho de Passo Fundo, ingressou no tribunal em vaga destinada à magistratura federal. Oriundo do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, Dipp trouxe também a experiência de quem advogou, pois chegou àquela corte pelo quinto constitucional. Nunca havia pensado em ser ministro, até que o conterrâneo Ari Pargendler, então desembargador federal, instigou-o a concorrer à vaga no TRF4.
“Eu não pensava em ser juiz. Não pensava sequer em ingressar na magistratura depois de 20 anos de advocacia em Porto Alegre. Eu fui juiz por acaso, não foi planejado nem querido. Mas no momento em que me engajei na magistratura, assumi plenamente e com convicção a atividade que iria exercer”, conta.
Dipp também integrou a Corte Especial, o mais alto colegiado de julgamentos do Tribunal da Cidadania. Foi membro do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), participou da Comissão de Coordenação do STJ e atuou como vice-diretor da Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados (Enfam).
Carente e injusto
Tantos cargos o fizeram conhecer melhor não só o Judiciário, mas a realidade brasileira: “Tive a oportunidade, dentro e fora do Judiciário, de conhecer a realidade de um país com inúmeras carências, uma desigualdade social profunda, uma injusta distribuição de renda, uma dificuldade tremenda de acesso à Justiça.” Dipp assegura que a magistratura foi uma experiência de vida muito rica.
Ele reconhece que nem todos os ministros têm essa oportunidade de conviver com diversos segmentos sociais e diversas instituições, inclusive fora da magistratura. “Isso me proporciona condições de ter uma visão mais crítica, mais compreensiva daquilo que estou fazendo, daquilo que eu fiz”, observa.
Por ocasião da posse na vice-presidência do STJ, Dipp foi chamado pelo então procurador-geral da República, Roberto Gurgel, de “verdadeiro multitarefas”. O ministro reconhece que há muito o que fazer para o aperfeiçoamento do Judiciário brasileiro, mas diz que nunca teve a pretensão de ser uma figura essencial – embora tenha percorrido nos últimos anos uma trajetória de destaque no cenário nacional.
Corregedor
Dipp ocupou dois dos mais importantes cargos do Judiciário: coordenador-geral da Justiça Federal, em 2007, e corregedor nacional de Justiça, de 2008 a 2010. Ele avalia que as experiências nos cargos lhe deram uma percepção ampla do funcionamento da Justiça brasileira em todos os seus ramos. Foi considerado pela revista Época um dos cem brasileiros mais influentes do ano de 2009. Em 2012, chegou a coordenar a Comissão Nacional da Verdade, instituída pelo governo federal para esclarecer violações dos direitos humanos durante o regime militar.
No Conselho Nacional de Justiça (CNJ), como corregedor, o ministro trabalhou para radiografar um Judiciário completamente desconhecido: “Havia pouca gestão nos tribunais, não havia estatísticas, não havia controle, não havia conhecimento de acervo de processos, havia muito pouco sobre concursos de promoção e remoção de juízes.”
Mudar essa realidade não foi trabalho só da corregedoria do CNJ, mas também dela. Na época, medidas tiveram de ser adotadas “com alguma contundência maior”, relata o ministro. Mas ele avalia que o papel da corregedoria está evoluindo: “Tudo tem etapas, como tem a vida. Penso que o papel das corregedorias, em especial do CNJ, seja agora aprimorar o sistema, dando qualidade às decisões judiciais.”
Realidade desconhecida
O ministro avalia que é difícil para o cidadão comum compreender o Poder Judiciário, com tantos tribunais, ramos e atribuições diferentes: “Essa é uma realidade que o Brasil não conhece, e se conhece não entende. Nós próprios, da magistratura, temos dificuldade de ter uma visão sistêmica de tudo que ocorre ao nosso lado e entender particularidades dessa prestação jurisdicional que, ao cabo, deve ser voltada sempre para a satisfação da cidadania; não apenas do cidadão, mas da própria cidadania como um todo.”
Durante sua permanência no STJ, o ministro proferiu mais de 80 mil decisões. “Não me impressiona o número de processos. Isso demonstra que houve um acesso maior ao Judiciário, principalmente a partir da Constituição de 1988, e o cidadão confia na Justiça, apesar de todos os desacertos, todas as dificuldades, todo um sistema processual inadequado, toda uma falta de gestão e organização”, analisa.
O ministro diz que só há pouco tempo o Judiciário começou a entender e aplicar políticas públicas de gestão e administração, de eficácia e de satisfação da decisão judicial frente ao cidadão. Ele comemora que o Judiciário brasileiro, apesar de suas “mazelas”, talvez seja um dos judiciários do mundo com maior grau de autonomia e independência frente aos demais poderes – e certamente o é em toda a América Latina.
Novo código
Seu profundo conhecimento sobre direito criminal o levou à presidência da comissão de juristas criada pelo Senado para preparar a reforma do Código Penal, cujos trabalhos foram encerrados em maio de 2012. A comissão que presidiu durante sete meses fez, segundo definiu, um anteprojeto de código moderno e central no sistema penal, com linguagem inteligível para o cidadão. O projeto está sendo apreciado pelo Legislativo.
O combate ao crime organizado e à lavagem de dinheiro foram as bandeiras levantadas por Gilson Dipp na elaboração do novo código. O ministro destaca os avanços que matérias como crimes financeiros, lavagem de dinheiro, organizações criminosas e cooperação internacional tiveram no país durante os últimos anos, em especial no texto do anteprojeto entregue aos senadores.
Maconha
Dipp não se diz surpreso com o debate acirrado no parlamento sobre a descriminalização do uso da maconha e seu uso medicinal. “Inúmeros países já estão, de certa forma, expandindo essa possibilidade em relação à maconha. Veja o que está acontecendo em alguns estados americanos, que têm competência para legislar autonomamente sobre o tema, e a experiência que vai se concretizar com o nosso vizinho Uruguai”, afirma.
Ele projeta que daqui a cinco anos – não mais do que isso – a sociedade vai tratar com maior naturalidade a possibilidade do uso de drogas, desde que regulado por lei. Para Dipp, será apenas uma consequência daquilo que os juristas viram como essencial para ser criminalizado. “A questão é definir se essas condutas eventuais têm um potencial lesivo para a sociedade ou não”, resume.
Transparência
Todo o trabalho de aproximação do Judiciário com a população faz o ministro acreditar que o caminho leva à transparência, não só no Judiciário como em todas as frentes públicas. Dipp entende que isso é da própria evolução da sociedade e das instituições, do amadurecimento da democracia brasileira, “que de certa forma é ainda um pouco incipiente”.
“Não somos transparentes ainda como deveríamos ser, mas há uma evolução”, avalia. Ele cita como exemplos a própria criação do CNJ, a Lei de Acesso à Informação e as sessões públicas televisionadas no Supremo Tribunal Federal (STF). O ministro entende que conhecer os defeitos é o primeiro passo para tentar superá-los e diminuí-los. “Falta humildade em todo o serviço público brasileiro”, diz ele.
Com a saída de Dipp, já são três as vagas em aberto no STJ, destinadas a membros dos Tribunais Regionais Federais – os ministros Ari Pargendler e Arnaldo Esteves Lima também se aposentaram este ano.