“As pessoas trans transitam. Isso independe de cirurgia. Quando você vê alguém na rua, você não vê genitália. Você vê gênero. O fato de eu me assumir como mulher não traz prejuízos à sociedade. A questão da inclusão não gera exclusão de direitos para outras pessoas que não são trans”, afirma Paula Benett.
Viver com dignidade
Pela decisão do STJ, a alteração do sexo constante no registro civil deve ser feita no assentamento de nascimento original, proibida a inclusão, ainda que sigilosa, da expressão “transexual”, do sexo biológico ou dos motivos das modificações registrais.
Assistente social e ativista do movimento LGBT, Paula conta que, antes de decisões como as tomadas pelo STJ, homens e mulheres trans enfrentavam muita dificuldade para conseguir alterar o registro civil, tendo de buscar a Justiça para conseguir a mudança do nome na certidão de nascimento sem ter, no entanto, a garantia de que a sua identidade de gênero seria respeitada.
“A decisão do STJ foi de suma importância, pois tem a ver com o respeito da identidade de gênero, tem a ver com quem realmente nós somos. Tem a ver com liberdade. Eu sou mulher, e a Justiça está me dizendo que assegura esse meu direito de ser mulher. Trata-se de garantir a dignidade da pessoa humana, de poder viver uma vida com dignidade, sem se preocupar com violência ou com julgamentos”, ressalta.
Respeito às diferenças
O entendimento de que é possível a alteração do registro civil sem realização de cirurgia foi firmado pela Quarta Turma do STJ, que acolheu pedido de modificação de prenome e de sexo registral de transexual que apresentou avaliação psicológica pericial para demonstrar identificação social como mulher.
Para o colegiado, o direito dos transexuais à retificação do registro não pode ser condicionado à realização de cirurgia, a qual muitas vezes se mostra inviável por razões médicas ou financeiras.
O relator, ministro Luis Felipe Salomão, destacou que os transexuais, via de regra, vivem em desconexão psíquico-emocional com o seu sexo biológico e buscam formas de adequação. Ele lembrou que, apesar da existência de princípios como a imutabilidade do registro, a Lei de Registros Públicos prevê a possibilidade de alteração do nome que cause situação vexatória ou de degradação social, a exemplo das denominações que destoem da aparência física do indivíduo.
Na hipótese específica dos transexuais, o ministro Salomão entendeu que a simples modificação de nome não seria suficiente para a concretização do princípio da dignidade da pessoa humana.
Para o relator, foi necessária uma evolução da jurisprudência para alcançar também os transexuais não operados, de forma a trazer “a máxima efetividade ao princípio constitucional da promoção da dignidade da pessoa humana, cláusula geral de tutela dos direitos existenciais inerentes à personalidade, a qual, hodiernamente, é concebida como valor fundamental do ordenamento jurídico, o que implica o dever inarredável de respeito às diferenças”.
Tudo em cartório
Ainda não existe no Brasil uma norma legal que regulamente a alteração do registro civil por pessoas trans. Até recentemente, para mudar a certidão de nascimento, era preciso mover uma ação judicial.
Porém, em junho de 2018, em convergência com as decisões tomadas pelo STJ e mais recentemente pelo Supremo Tribunal Federal (ADI 4.275), o então corregedor nacional de Justiça, ministro João Otávio de Noronha, publicou o Provimento 73, que dispõe sobre a averbação da alteração do prenome e do gênero nos assentos de nascimento e casamento de transgêneros.
Ficou estabelecido que homens e mulheres trans, maiores de 18 anos, podem pedir a alteração do registro civil, adequando-o à identidade de gênero autopercebida, independentemente de autorização judicial prévia ou comprovação de cirurgia de adequação sexual.
O pedido de retificação registral de sexo e de mudança do prenome e da imagem registrados na documentação pessoal pode ser feito diretamente nos cartórios de registro civil, não sendo necessária a presença de advogados ou defensores públicos.