A palavra do músico: streaming e a decisão do STJ sobre direitos autorais
17/02/2019 06:00
 
 
14/08/2019 10:08

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Ao mesmo tempo em que se transportava da música clássica para o rap, o DJ e produtor musical Cláudio Raffaello Santoro, ou apenas DJ Raffa Santoro, acompanhava o mercado musical analógico caminhar em direção ao ambiente virtual. Das agulhas nos discos de vinil aos cliques em plataformas musicais na internet, o músico, filho do maestro Claudio Santoro, construiu uma carreira de 30 anos em que já assinou a produção de 130 discos, quatro deles premiados como discos de ouro.

O sucesso como um artista multifacetado – além do rap e da música eletrônica, o DJ já produziu até trilhas sonoras para filmes – não significa, todavia, expressivo retorno financeiro. No mercado musical, os valores recebidos pelo artista provêm de várias fontes, como a venda de discos, shows e os direitos autorais, estes últimos conferidos ao criador da obra intelectual para que ele possa usufruir dos benefícios resultantes da exploração de sua criação.

Raffa Santoro: ambiente digital não trouxe grandes mudanças na distribuição dos direitos autorais.

No Brasil, os direitos autorais são regulamentados principalmente pela Lei 9.610/98, que estabelece parâmetros como a proteção aos direitos morais e patrimoniais, direitos pela execução pública de obras musicais e as formas de arrecadação e distribuição dos direitos autorais – em geral realizadas pelos órgãos de intermediação, como o Escritório Central de Arrecadação e Distribuição (Ecad).  

Tudo na mesma

Quando o mundo era analógico, Raffa Santoro lembra que, no caso de execuções musicais públicas como nas rádios, em geral, os artistas precisavam que o Ecad visitasse as emissoras, checasse a programação (que era toda escrita, em papel) e fizesse a arrecadação dos direitos.

A partir do momento em que as plataformas de música se tornaram digitais, segundo o DJ, os artistas imaginaram que o mecanismo de distribuição se tornaria mais fácil, mas o processo continua sendo um desafio, especialmente para os chamados artistas independentes, que não têm a retaguarda de grandes gravadoras.

“E nesse ambiente digital, praticamente ficou a mesma coisa. Por exemplo, todo dia as plataformas mudam um pouco o processo para que eles não distribuam tanto o dinheiro, ou te paguem uma quantia muito ínfima”, afirma o produtor musical.

A era pós-Napster

Em um mercado inteiramente afetado pela revolução dos bits, as próprias formas de comercialização da música –  e, por extensão, de remuneração e proteção intelectual dos artistas – foram alvo de diversos embates judiciais em todo o mundo.

Raffa Santoro lembra um dos conflitos mais importantes, no início dos anos 2000, quando o Napster, serviço de compartilhamento de músicas por download, protagonizou a primeira grande disputa entre uma plataforma web e a indústria fonográfica. O serviço foi encerrado em 2001, após ter sido processado por promover pirataria e violar arquivos de áudio protegidos por direito autoral. Posteriormente, o lançamento de serviços de streaming por assinatura, como o Spotify e o Deezer, diminuiu o índice de downloads ilegais, mas não encerrou as discussões sobre direitos autorais.

No Superior Tribunal de Justiça (STJ), um dos julgamentos mais importantes relacionados à indústria musical e aos direitos autorais ocorreu em 2017, quando a Segunda Seção decidiu que é legítima a arrecadação dos direitos autorais pelo Ecad nas transmissões musicais pela internet, via streaming.

Em recurso especial do Ecad contra a Rádio Oi FM, os ministros discutiram se a reprodução de músicas on-line poderia ser enquadrada no conceito de execução pública estabelecido na Lei de Direitos Autorais. Na ação, a Oi alegava que já pagava direitos autorais à entidade de arrecadação em virtude da transmissão radiofônica e, por isso, um novo pagamento pela retransmissão do conteúdo na internet seria indevido.

Conceito ampliado

Segundo o relator do caso, ministro Villas Bôas Cueva, no contexto da sociedade da informação, o conceito de público não poderia mais ser restringido, como na era analógica, a um conjunto de pessoas que se reúnem e que têm acesso à obra ao mesmo tempo. Para o ministro, público também é a pessoa que está sozinha, mesmo em casa, e que faz uso da obra quando quiser.  “Isso porque o fato de a obra intelectual estar à disposição, ao alcance do público, no ambiente coletivo da internet, por si só, é capaz de tornar a execução musical pública”, afirmou.

De acordo com o relator, independentemente de interatividade entre o usuário e a plataforma digital, da simultaneidade na recepção do conteúdo ou da pluralidade de pessoas, a internet caracteriza-se como um local de frequência coletiva e, por isso, a transmissão via streaming torna legítima a arrecadação e distribuição dos direitos autorais pelo Ecad.

“Nesse cenário, a compreensão de que o streaming é hipótese de execução pública passível de cobrança pelo Ecad prestigia, incentiva e protege os atores centrais da indústria da música: os autores”, apontou Villas Bôas Cueva.

Desequilíbrio

Para o DJ Raffa Santoro, a decisão do STJ é importante em um mercado no qual ainda prevalece o desequilíbrio entre as gravadoras, as distribuidoras de conteúdo e os artistas. Como produtor de diversos músicos e grupos do Distrito Federal, ele lembra que muitos artistas têm uma parte importante de seus rendimentos ligada à exposição via internet, mas raramente a relação entre o número de visualizações e o recebimento dos direitos autorais é proporcional.

“Menos de 30% de tudo o que é arrecadado na comercialização de músicas em ambiente on-line fica com os próprios músicos. Mais de 70% é destinado às distribuidoras digitais, às gravadoras”, aponta o produtor musical.

Segundo Raffa Santoro, além de mecanismos de aprimoramento da legislação e do processo da arrecadação e distribuição dos direitos autorais, também é necessário que os próprios músicos busquem o registro nas associações de proteção aos direitos autorais.

“Não adianta nada colocar tudo nas plataformas digitais e não preencher toda a parte de direitos autorais ou não mandar para a associação, para que ela tenha todo esse registro para saber que aquele produto é seu e os direitos precisam ser recolhidos, tanto digitalmente quanto por outras formas de vendagem”, afirma o DJ.

A série 30 anos, 30 histórias apresenta reportagens especiais sobre pessoas que, por diferentes razões, têm suas vidas entrelaçadas com a história de três décadas do Superior Tribunal de Justiça. Os textos são publicados nos fins de semana.