Um indivíduo se aproxima da praça movimentada, saca o revólver – embora não tenha autorização para portá-lo nem perícia para manuseá-lo – e tenta atingir uma estátua no local. Mesmo tendo consciência de que sua ação pode matar alguém, ele assume o risco e segue disparando a arma. Uma pessoa que passava por ali é ferida e morre pouco depois.
A situação hipotética exemplifica o conceito de dolo eventual: nessa modalidade delituosa, prevista no artigo 18, inciso I, do Código Penal, o agente não quer atingir determinado resultado, contudo assume o risco de produzi-lo. É uma conduta diferente daquela qualificada como culpa consciente, na qual a pessoa prevê que o resultado possa ocorrer, mas acredita sinceramente que ele não acontecerá.
A análise do dolo eventual é bastante comum em crimes de homicídio, nos quais é essencial averiguar, além do modo de execução e dos resultados da ação, a intenção real do agente que comete o delito. Um exemplo conhecido são os crimes de trânsito, que recebem atenção especial do Código de Trânsito Brasileiro (CTB).
A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ) sobre o dolo eventual nos crimes de homicídio é o tema desta matéria.
A despeito de haver decisões em sentido contrário, os julgados mais recentes concluíram pela compatibilidade do dolo eventual com as qualificadoras objetivas. No REsp 1.836.556, a Quinta Turma estabeleceu que o dolo eventual no crime de homicídio é compatível com as qualificadoras objetivas previstas no artigo 121, parágrafo 2º, incisos III (emprego de veneno, fogo, explosivo, asfixia, tortura ou outro meio insidioso ou cruel) e IV (traição, emboscada ou mediante dissimulação) do Código Penal.
A tese foi fixada em ação na qual uma policial civil foi denunciada porque, supostamente em razão do barulho de uma festa próxima à sua casa, foi até o local e fez disparos com arma de fogo, com o objetivo de dispersar as pessoas que se reuniam ali. Uma delas foi atingida e morreu.
A policial foi acusada de homicídio qualificado, mas o Tribunal de Justiça do Paraná entendeu que, em razão da caracterização do dolo eventual no caso, não seria possível a inclusão das qualificadoras objetivas.
Segundo o ministro Joel Ilan Paciornik, aqueles que consideram o dolo eventual incompatível com as qualificadoras objetivas do homicídio argumentam que o autor escolhe o meio e o modo de agir com outra finalidade – lícita ou não –, embora a morte seja previsível e admitida.
Esse posicionamento, para o relator, retira do mundo jurídico a possibilidade fática de existir um autor que escolha utilizar meio e modo específicos mais reprováveis para alcançar uma finalidade diferente da morte, mesmo sendo previsível esse resultado e admissível a sua concretização.
O ministro se baseou em precedentes do próprio STJ – mesmo reconhecendo a existência de posições divergentes na corte – para afirmar que, em princípio, é penalmente aceitável a conjugação das qualificadoras objetivas com o dolo eventual.
Em relação à tentativa de homicídio, a Quinta Turma reconheceu a sua compatibilidade com o dolo eventual. O entendimento foi aplicado em processo no qual o réu, durante uma briga de trânsito, pegou uma faca no carro e acertou vários golpes na vítima.
Para o Ministério Público, o réu agiu com dolo eventual ao assumir o risco de provocar a morte da vítima – que só não se consumou porque ela foi socorrida e levada ao hospital.
No habeas corpus, a Defensoria Pública buscou desclassificar o delito de tentativa de homicídio qualificado para o crime de lesão corporal, sob o argumento de que seriam incompatíveis as figuras da tentativa e do dolo eventual.
O ministro Reynaldo Soares da Fonseca apontou que, quando o agente quer o resultado (dolo direto) ou assume o risco de produzi-lo (dolo eventual), há, indistintamente, a figura do dolo. Segundo o relator, se em ambas as condutas o delito pode não ser consumado por circunstâncias alheias à vontade do agente, não há que se cogitar a incompatibilidade entre o dolo eventual e o instituto da tentativa (HC 678.195).
No REsp 1.829.601, a Sexta Turma reconheceu a compatibilidade entre o dolo eventual e a qualificadora de meio cruel no crime de homicídio na direção de veículo.
No processo que deu origem ao recurso, o Ministério Público afirmou que o réu estava conduzindo uma caminhonete sem habilitação e, ao fazer uma curva, desrespeitou a preferência de passagem de pedestre e atropelou uma pessoa. Apesar dos gritos de testemunhas, o motorista fugiu em alta velocidade, arrastando a vítima por mais de 500 metros e causando sua morte.
Para o Tribunal de Justiça do Paraná, o réu agiu com dolo eventual – como fixado na sentença de pronúncia. Entretanto, na visão do tribunal, ao apontar os indícios de dolo eventual, a sentença tomou como fundamento o fato de a vítima ter sido arrastada por longa distância, de modo que a mesma circunstância não poderia ser novamente utilizada para qualificar o crime em razão do meio cruel.
O ministro aposentado Nefi Cordeiro citou precedentes do STJ no sentido de que não há incompatibilidade entre o dolo eventual e a qualificadora do meio cruel.
"É admitida a incidência da qualificadora do meio cruel, relativamente ao fato de a vítima ter sido arrastada por cerca de 500 metros, presa às ferragens do veículo, ainda que já considerado no reconhecimento do dolo eventual na sentença de pronúncia", concluiu o ministro.
Em sentido semelhante, no REsp 1.573.829, a Quinta Turma estabeleceu que há compatibilidade entre o dolo eventual e o reconhecimento do meio cruel para a consecução da ação criminosa.
Para o relator do recurso, ministro Reynaldo Soares da Fonseca, a compatibilidade é possível "na medida em que o dolo do agente, direto ou indireto, não exclui a possibilidade de a prática delitiva envolver o emprego de meio mais reprovável, como veneno, fogo, explosivo, asfixia, tortura ou outro meio insidioso ou cruel (artigo 121, parágrafo 2º, inciso III, do CP)".
Em alguns julgamentos, o STJ analisou a possibilidade de incidência das qualificadoras de natureza subjetiva no crime caracterizado pelo elemento subjetivo do dolo eventual.
No REsp 1.926.056, por exemplo, a Quinta Turma considerou compatíveis as qualificadoras subjetivas do motivo torpe ou fútil em um homicídio com dolo eventual. O relator do recurso, ministro Ribeiro Dantas, destacou que, nesses casos, é papel do tribunal do júri analisar se deve ser mantida ou excluída a qualificadora do crime.
"Caberá ao júri a tarefa de avaliar se há, realmente, torpeza nos motivos do réu, sendo inviável a exclusão da qualificadora nesta etapa processual, por não ser manifestamente improcedente", apontou o ministro.
No mesmo sentido, a Sexta Turma, no REsp 1.779.570, entendeu ser atribuição do conselho de sentença analisar as circunstâncias de ação de um réu em caso de tentativa de homicídio com dolo eventual, não sendo possível ao STJ afastar do júri a análise sobre eventual qualificadora subjetiva por motivo fútil.
Segundo os autos, o réu teria abordado a vítima em via pública e realizado disparos de arma de fogo contra ela, em horário em que passavam várias pessoas pelo local. Em segundo grau, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul havia classificado o crime como tentativa de homicídio qualificado (meio cruel), além de afastar a incidência das qualificadoras por motivo fútil e uso de recurso que dificultou a defesa da vítima.
A relatora do recurso, ministra Laurita Vaz, destacou que o STJ possui o entendimento de que é possível a configuração do dolo eventual nessas hipóteses, porque "é razoável interpretar que o agente que atira livremente em via pública movimentada pode prever e consentir com a possibilidade de atingir fatalmente pessoas diversas daquela contra quem despeja a sua fúria".
Para a ministra, somente o conselho de sentença pode adentrar no mérito da questão e realizar valoração sobre a banalidade ou não da motivação para o homicídio tentado, tendo em vista que a jurisprudência do STJ não afasta a compatibilidade da qualificadora do motivo fútil com o dolo eventual.
Além disso, Laurita Vaz também entendeu ser o caso de submeter ao júri à qualificadora de meio que dificultou a defesa de uma das vítimas – também não havendo, em relação a essa qualificadora, incompatibilidade com o dolo eventual.
A análise da aplicação da figura do dolo eventual é comum nos casos de homicídio cometido no trânsito. Esse panorama sofreu influência da Lei 13.546/2017, que trouxe alterações ao Código de Trânsito Brasileiro. No artigo 302 – que tipifica o crime de homicídio culposo na direção de veículo automotor –, foi acrescentada uma previsão de pena mais alta para o delito cometido sob a influência de álcool ou de qualquer outra substância psicoativa que cause dependência – mas ainda menor que a do homicídio doloso.
Após a atualização do CTB, surgiu no Judiciário a discussão sobre se ainda seria possível reconhecer o dolo eventual quando o motorista comete crime sob efeito de álcool ou de outra substância psicoativa.
Esse debate foi levantado no AREsp 1.166.037, no qual se discutia a capitulação penal para um réu que, após ingerir bebidas alcoólicas em uma loja de conveniência, saiu dirigindo em velocidade acima da permitida e, sem respeitar a sinalização, atingiu outro carro. Um dos ocupantes do veículo atingido morreu.
No STJ, a defesa, em razão das alterações promovidas pela Lei 13.546/2017, pleiteou a retirada do dolo eventual e a desclassificação do crime para homicídio culposo.
O ministro Reynaldo Soares da Fonseca explicou que o parágrafo 3º do artigo 302 do CTB – que foi introduzido pela Lei 13.546/2017 – apenas previu que, se o agente, por ocasião do acidente, estiver sob influência de álcool ou substância assemelhada, sofrerá pena mais grave (de cinco a oito anos de reclusão).
"Não significa, por isso, dizer que aqueles que dirigiam embriagados ou sob efeito de substâncias psicoativas e se envolveram em homicídio no trânsito (dolo eventual) tenham que, de pronto, ser beneficiados com a desclassificação do delito para a modalidade culposa", afirmou o relator.
Em seu voto, Reynaldo Soares da Fonseca apontou que, de acordo com os autos, o acusado, além de embriagado, dirigia em velocidade incompatível com a via, tendo as instâncias ordinárias entendido que ele assumiu o risco de produzir o resultado morte – impondo-se, dessa forma, a submissão do caso ao tribunal do júri, juiz natural da causa.
Por outro lado, em 2018, no REsp 1.689.173, a Sexta Turma concluiu que a embriaguez do motorista, por si só, não é suficiente para a determinação do dolo eventual em acidente de trânsito com resultado morte.
A posição foi adotada em caso no qual a ré teria saído de uma festa em que ingeriu bebidas alcoólicas e, após assumir a direção de veículo, colidiu de frente com outro carro, causando a morte do motorista. Ela foi pronunciada por homicídio simples.
Relator do pedido de habeas corpus, o ministro Rogerio Schietti Cruz explicou que, com base na doutrina majoritária, somente haverá a assunção do risco – apto a caracterizar o dolo eventual – quando o agente tenha tomado como séria a possibilidade de lesar ou colocar em perigo o bem jurídico e não se importado com isso, demonstrando, assim, que o resultado lhe era indiferente.
Entretanto, na esfera do direito, Schietti lembrou a dificuldade de se identificar o elemento psíquico que configura o dolo eventual do agente, ou seja, a conclusão judicial sobre a previsão e o consentimento do réu em relação ao resultado morte na direção de veículo.
No caso dos autos, o relator destacou que, para o tribunal de origem, a embriaguez, isoladamente, já justificaria a existência de dolo eventual. Todavia, segundo o ministro, essa posição equivaleria a admitir que qualquer indivíduo que venha a conduzir veículo em via pública com a capacidade psicomotora alterada em razão da ingestão de álcool responderá por homicídio doloso.
De acordo com Rogerio Schietti, de fato, a embriaguez ao volante é circunstância negativa que deve contribuir para a análise do elemento anímico que move o agente. Contudo, o magistrado ponderou que não seria a melhor solução presumir a presença do dolo eventual como elemento inerente ao comportamento do motorista que, sob o efeito de álcool – qualquer que seja a quantidade ingerida –, causa o acidente com resultado morte, ainda que não haja outro elemento que indique a conduta dolosa.
"Muito embora as instâncias de origem apontem, em tese, para o dolo eventual, devido ao possível estado de embriaguez da ré, ora recorrente, não vejo suficiência em tal condição para gerar a presunção, diante da inexistência de outros elementos delineados nos autos, de que ela estivesse dirigindo de forma a assumir o risco de provocar acidente sem se importar com eventual resultado fatal de seu comportamento", concluiu o ministro ao desclassificar a conduta da ré para o crime de homicídio culposo na direção de veículo (artigo 302 do CTB).
No mesmo julgamento, a Sexta Turma considerou que, na primeira fase do tribunal do júri, cabe ao juiz togado apreciar a existência de dolo eventual ou de culpa consciente do motorista que, após a ingestão de álcool, se envolve em acidente com resultado morte.