O processo judicial é regulado por normas expressas e vinculantes, as quais são especialmente relevantes no campo recursal, que se rege pelos princípios da taxatividade e da singularidade. A partir desses princípios, são estabelecidos com precisão os únicos meios adequados de submissão das decisões à revisão do Poder Judiciário. No entanto, em situações excepcionais, é possível aplicar a chamada fungibilidade recursal, que consiste em admitir a interposição de um recurso impróprio como se fosse o adequado para a impugnação daquela espécie de decisão judicial.
Nos diversos casos em que analisou essa possibilidade, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) consolidou uma jurisprudência que condiciona a aplicação do princípio da fungibilidade ao preenchimento dos seguintes requisitos: a) dúvida objetiva quanto ao recurso a ser interposto; b) inexistência de erro grosseiro na escolha da peça recursal; e c) observância do prazo do recurso cabível.
Situação similar, mas diversa, ocorre quando o recorrente interpõe o recurso correto para impugnar uma decisão, observando integralmente as formalidades inerentes a tal espécie recursal, mas se engana ao indicar o nome do recurso – situação que é entendida como simples erro material.
De acordo com a ministra do STJ Nancy Andrighi, nessas situações, deve prevalecer a regra segundo a qual, desde que atendidos todos os pressupostos de admissibilidade do apelo cabível, o nome atribuído ao recurso é irrelevante para o seu conhecimento. "De fato, a inadmissão do recurso por esse fator representaria indevido e indesejado excesso de rigorismo, em manifesto desrespeito ao princípio da instrumentalidade das formas", disse.
No julgamento do REsp 1.947.309, a Segunda Turma reafirmou que, sob o Código de Processo Civil (CPC) de 2015, a apelação é o recurso cabível contra decisão que acolhe a impugnação do cumprimento de sentença e extingue a execução. Por sua vez, o agravo de instrumento é o recurso cabível contra as decisões que acolhem parcialmente a impugnação ou lhe negam ##provimento##, pois, não acarretando a extinção da fase executiva em andamento, essas decisões têm natureza jurídica de interlocutórias.
"A inobservância dessa sistemática caracteriza erro grosseiro, vedada a aplicação do princípio da fungibilidade recursal, cabível apenas na hipótese de dúvida objetiva", lembrou o relator do recurso, ministro Francisco Falcão.
No caso em análise, a União apresentou impugnação a um cumprimento de sentença, a qual foi parcialmente acolhida, sem extinguir a execução. A parte contrária, contudo, recorreu por meio de apelação, e não de agravo de instrumento – o que inviabilizou a aplicação do princípio da fungibilidade.
No julgamento do REsp 1.812.987, a Quarta Turma discutiu se seria possível, em nome do princípio da fungibilidade, aceitar o uso de uma ação de reintegração de posse em lugar da ação de despejo.
O colegiado julgou extinto um processo no qual se buscava a retomada da posse direta de imóvel alugado, acompanhando o relator do caso, ministro Antonio Carlos Ferreira, para quem a ação adequada para tal pretensão seria a de despejo, nos termos do artigo 5º da Lei 8.245/1991 (Lei de Locação).
"Embora o pedido da reintegração de posse e da ação de despejo seja a posse legítima do bem imóvel, trata-se de pretensões judiciais com natureza e fundamento jurídico distintos, pois, enquanto a primeira baseia-se na situação fática possessória da coisa, a segunda se fundamenta em prévia relação contratual locatícia, regida por norma especial, o que, consequentemente, impossibilita sua fungibilidade", completou.
Na avaliação do ministro, permitir o ajuizamento de ação possessória em substituição da ação de despejo significaria negar vigência ao conjunto de regras especiais da Lei de Locação, tais como prazos, penalidades e garantias processuais.
O ministro Antonio Carlos também foi o relator do REsp 1.828.657, em que a Quarta Turma analisou a aplicação da fungibilidade na hipótese de recurso contra decisão que acolheu embargos a uma ação monitória de parte dos litisconsortes passivos. Na decisão, eles foram excluídos da relação processual, mas a ação monitória continuou a tramitar em relação a um dos réus.
No caso dos autos, a parte interpôs recurso de apelação, com base no artigo 702, parágrafo 9º, do CPC, segundo a qual, o recurso cabível contra sentença que acolhe ou rejeita os embargos à monitória é a apelação. Entretanto, o tribunal de origem entendeu que, não encerrada a ação monitória, a parte deveria ter interposto agravo de instrumento, nos termos dos artigos 1.009, parágrafo 1º, e 1.015, VII, do CPC.
O ministro esclareceu que, quando não encerrada a fase de conhecimento da ação monitória, o recurso cabível é o agravo de instrumento. Já a apelação, destacou, é cabível apenas nos casos em que os embargos à monitória levarem à extinção da ação ou encerrarem a fase de conhecimento.
Contudo, o relator ponderou que, diante da previsão do parágrafo 9°, do artigo 702, do CPC, seria possível admitir a existência de dúvida objetiva, podendo-se aplicar o princípio da fungibilidade recursal no caso.
No julgamento do REsp 1.954.643, a Terceira Turma entendeu que o ato judicial que decreta o fim do vínculo societário em relação a um sócio tem natureza de sentença, de modo que o recurso cabível é a apelação, conforme o artigo 1.009 do CPC.
O colegiado, por unanimidade, manteve acórdão do Tribunal de Justiça de Santa Catarina (TJSC) que não admitiu o agravo de instrumento por meio do qual a ex-sócia de um escritório de advocacia recorreu da homologação do acordo celebrado entre ela e a firma para formalizar a sua retirada.
Relatora do recurso especial, a ministra Nancy Andrighi considerou que "a interposição de agravo de instrumento contra sentença que homologa transação e extingue o processo com julgamento de mérito consiste em erro grosseiro, não admitindo a aplicação do princípio da fungibilidade".
Segundo a ministra, ainda que não houvesse a sentença homologatória da transação no caso em julgamento, o pronunciamento judicial que decreta a dissolução parcial da sociedade em casos similares possui a natureza de sentença, "e não, como afirma a recorrente, de decisão parcial de mérito, de modo que o recurso contra ela cabível é a apelação".
Na avaliação da relatora, não era possível aplicar a fungibilidade recursal ao caso – como requerido pela ex-sócia –, uma vez que não havia dúvida razoável quanto ao recurso cabível, sendo inviável a aplicação desse princípio, cuja incidência não admite erro grosseiro no ato de recorrer.
O STJ também tem diversos precedentes, nas turmas de direito penal, nos quais se aplica o princípio da fungibilidade quando os embargos de declaração são opostos contra decisão monocrática com o nítido propósito de modificar o seu conteúdo (embargos com efeitos infringentes), sem a pretensão de sanar vícios no julgado. Nessas situações, os embargos de declaração são recebidos como agravo regimental.
No julgamento dos EDcl no HC 856.553, a relatora do caso, ministra Laurita Vaz (aposentada), verificou que os embargos de declaração foram opostos dentro do prazo de cinco dias previstos para o agravo regimental, e que a pretensão era obter a redução da pena do réu a partir do reconhecimento do tráfico de drogas privilegiado – o que permitia a aplicação do princípio da fungibilidade para análise do recurso.
No mesmo sentido, a Quinta Turma, no julgamento do AgRg no HC 801.806, reafirmou a jurisprudência de que o pedido de reconsideração apresentado contra decisão monocrática, dentro do prazo, deve ser recebido como agravo regimental, em homenagem ao princípio da fungibilidade.
Contudo, por não haver previsão legal ou regimental de cabimento de pedido de reconsideração, nem de agravo regimental ou interno, contra julgamento de órgãos colegiados do STJ, a turma julgadora considerou impossível aplicar a fungibilidade nesses casos.
"Constitui erro grosseiro o manejo de quaisquer dessas vias de impugnação contra ##acórdãos##, motivo pelo qual não se aplica o princípio da fungibilidade", disse a relatora do HC 711.776, ministra Laurita Vaz.