Atualmente, é possível mudar o nome e o gênero nos documentos de identificação sem a necessidade de ação judicial ou da realização de cirurgia de transgenitalização. A situação, contudo, era bastante diferente há poucos anos, quando os interessados em alterar o registro civil encontravam um processo longo e tortuoso pelo caminho.
No Superior Tribunal de Justiça (STJ), o primeiro passo para que os transgêneros pudessem ter o direito de usar o nome social sem maiores burocracias aconteceu no julgamento do REsp 1.008.398, em 2009. Na ocasião, a Terceira Turma do STJ deu provimento ao recurso de uma mulher transgênero que, após a cirurgia de transgenitalização, buscava alterar o gênero e o nome registrados em sua certidão de nascimento.
A relatora do recurso, ministra Nancy Andrighi, destacou que, para as pessoas transexuais, ter uma vida digna importa em ver reconhecida a sua identidade sexual, sob a ótica psicossocial, a refletir a verdade real vivenciada por esses indivíduos.
"Vetar a alteração do prenome do transexual redesignado corresponderia a mantê-lo em uma insustentável posição de angústia, incerteza e conflitos, que inegavelmente atinge a dignidade da pessoa humana assegurada pela Constituição Federal. No caso, a possibilidade de uma vida digna para o recorrente depende da alteração solicitada", declarou a ministra.
No vídeo, a servidora do STJ Victoria Moreno comenta as dificuldades encontradas pelas pessoas trans e destaca a importância do reconhecimento judicial de seus direitos:
Em 2017, a Quarta Turma do STJ evoluiu para decidir que, independentemente da realização de cirurgia de adequação sexual, é possível a alteração do nome e do sexo constantes no registro civil de pessoas transgênero, desde que comprovada judicialmente essa condição. Até então, o tribunal só tinha permitido a mudança do nome e da indicação de sexo no registro de pessoas submetidas à cirurgia.
No julgamento, o ministro Luis Felipe Salomão – relator do recurso especial interposto por uma mulher transgênero – defendeu uma interpretação jurídica que privilegiasse a identidade psicossocial em relação à biológica, de modo que, para a alteração do sexo em documentos públicos, foi dispensada a prova de intervenção cirúrgica. Segundo o magistrado, esse olhar conferia a máxima efetividade ao princípio constitucional da promoção da dignidade da pessoa humana.
Confira, no vídeo, o depoimento da atriz e humorista Nany People sobre o processo de alteração de seu registro civil:
No ano seguinte, o Supremo Tribunal Federal (STF), ao julgar o Recurso Extraordinário 670.422 (Tema 761 da repercussão geral) e a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4.275, também adotou o entendimento de que a alteração do prenome e do sexo no registro civil é um direito fundamental do transgênero, exigindo-se, para o seu exercício, nada além da manifestação de vontade.
Os precedentes do STJ foram destacados nos debates do STF sobre o tema, e a corte avançou para estabelecer que a mudança poderia ser requisitada pela pessoa interessada no próprio cartório, sem a necessidade de processo judicial.
A partir das decisões do STJ e do STF, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) publicou o Provimento 73/2018 para orientar o procedimento de alteração do nome e do sexo das pessoas trans diretamente nos cartórios de registro civil. O normativo fixou que a pessoa com mais de 18 anos que não se identifique com o gênero constante em seu registro de nascimento, que tenha ou não passado pela cirurgia de redesignação sexual, pode pedir a mudança extrajudicial.
Em 2022, a Lei 14.382 alterou o artigo 56 da Lei de Registros Públicos para permitir que qualquer pessoa maior de idade (não só os transgêneros), a qualquer tempo, requeira a mudança do prenome, independentemente de justificativa e de autorização judicial – direito que antes, em regra, só podia ser exercido no prazo de um ano após a maioridade.
Em comparação a 2009 – ano em que o STJ proferiu uma das primeiras decisões sobre a modificação do registro civil para pessoas trans –, os dias atuais oferecem uma perspectiva muito mais favorável para os interessados em adequar a identificação civil à sua autopercepção como indivíduo.
Segundo a Associação dos Registradores de Pessoas Naturais (Arpen-Brasil), atualmente, o pedido para a retificação de gênero ou nome pode ser feito em qualquer um dos 7.660 cartórios de registro civil do país, de onde o procedimento será encaminhado ao cartório que registrou o nascimento da pessoa. O custo da retificação varia conforme o estado da federação.
Segundo a Arpen-Brasil, para iniciar o procedimento de mudança de nome e/ou gênero no cartório de registro civil, é necessário apresentar os documentos determinados pelo Provimento 73 do CNJ.
Cartilha da Arpen-Brasil detalha o passo a passo para a retificação do registro civil nos cartórios.
Dados da Arpen-Brasil mostram que, desde as decisões proferidas pelo STJ e pelo STF, o número de pessoas que solicitam a alteração do registro civil diretamente nos cartórios vem crescendo a cada ano. Em 2018, 1.129 pessoas alteraram o gênero registrado. No ano seguinte, o número de registros modificados aumentou para 1.848; em 2020, caiu para 1.283 devido à pandemia da Covid-19, mas, em 2021, voltou a crescer, com 1.863 alterações, chegando a 2.932 em 2022 (até 10 de dezembro).
Do total de 9.055 mudanças de gênero requeridas nesses cinco anos, a maioria envolveu também a modificação do nome civil. A Arpen-Brasil informa que em apenas 58 casos não houve pedido para alteração do nome.
A presidente da Associação de Travestis e Transexuais (Antra), Keila Simpson, conta que as novas regras sobre alteração de registro civil foram muito comemoradas pela comunidade trans. "A gente saiu de um processo que era muito judicializado e dispendioso, pois os percursos que deveriam ser feitos eram muito longos e, no final, o pedido era quase sempre indeferido", comenta Keila.
Contudo, Keila Simpson avalia que, apesar de as alterações ocorrerem mais facilmente, o processo ainda é burocratizado. Segundo a presidente da Antra, as pessoas mais vulneráveis e com menos acesso à educação encontram dificuldade para retirar nas plataformas digitais os documentos necessários para o procedimento.
"O aprimoramento que eu acredito que seja importante seria eliminar um pouco da burocracia, com essas certidões e tudo mais. Também seria importante a gratuidade desses documentos para quem tem essa necessidade. Acho que esses dois pontos já ajudariam bastante essa parcela da população que ainda tem dificuldade de acessar esse direito", afirma.
No Congresso Nacional, após as decisões do STJ e do STF, surgiram iniciativas para atualizar a legislação quanto à mudança do registro civil de pessoas transgênero.
O Projeto de Lei (PL) 2.745/2019, de autoria da Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa do Senado Federal, visa alterar o Código Civil e a Lei 6.015/1973 para assegurar o direito ao reconhecimento da identidade de gênero e permitir a mudança do prenome e do sexo da pessoa nos documentos de identificação, quando comprovadamente divergentes. O PL aguarda designação de relator para continuar a tramitação no Congresso Nacional.
Já o
PL 3.367/2020, proposto na Câmara dos Deputados, quer alterar a Lei 6.015/1973 para instituir a isenção de taxas para retificação de nomes civis e gênero de pessoas transgênero, travestis, intersexuais ou não binárias. A autora do projeto, a deputada Fernanda Melchionna (PSOL), justifica a iniciativa afirmando que as altas taxas cobradas por cartórios e órgãos públicos para a emissão das novas vias de documentos oficiais tornam o direito inacessível à maior parte da população.