O Dia Internacional da Mulher, celebrado em 8 de março, é um tributo às conquistas e contribuições das mulheres ao longo da história. É um momento para reconhecer vozes e realizações que permeiam a luta contínua por igualdade em todo o mundo.
Mas o Dia Internacional da Mulher também é uma chamada à ação contra desafios persistentes. De acordo com a Pesquisa Nacional de Violência contra a Mulher, realizada pelo Instituto DataSenado em 2023, 30% das mulheres com 16 anos ou mais já foram vítimas de algum tipo de violência doméstica ou familiar praticada por homens. Ou seja, cerca de 25,4 milhões de brasileiras sofreram esse tipo de violência. Desse total, 22% declararam que algum episódio de violência ocorreu nos 12 meses anteriores à pesquisa.
O levantamento ainda mostra que 74% das brasileiras acreditam que houve aumento da violência doméstica e familiar em 2023. Essa percepção foi mais acentuada entre as pobres (78%), seguidas pelas negras, pardas e indígenas (71%), pelas brancas e amarelas (70%) e, por último, pelas mulheres com renda acima de dois salários mínimos (entre 62% e 70%).
Nesse contexto, a luta contra a violência de gênero – assim como contra as disparidades no ambiente de trabalho e outras formas de discriminação – continua sendo essencial para eliminar as barreiras que limitam o pleno desenvolvimento das mulheres.
O Superior Tribunal de Justiça (STJ) tem se empenhado para tornar mais efetivos os mecanismos legais que buscam coibir e responsabilizar os agressores. Nessa linha, por proposta da própria corte, foi firmado, nas Metas Nacionais do Poder Judiciário para 2024, o compromisso de julgar, até 31 de dezembro, todos os processos de feminicídio e de violência doméstica distribuídos até 2022.
As metas nacionais, que expressam o compromisso dos tribunais com a prestação de uma justiça mais rápida e eficiente, são estabelecidas anualmente no Encontro Nacional do Poder Judiciário. Em dezembro do ano passado, no encontro realizado em Salvador, ficou definido que a Meta 8 (prioridade para os processos sobre violência de gênero distribuídos
até 2022 ), antes aplicável apenas à Justiça dos estados, seria encampada também pelo STJ, com o compromisso específico de julgar 100% dos casos pendentes.
De acordo com a presidente do STJ, ministra Maria Thereza de Assis Moura, a adesão à meta foi voluntária, a partir de uma manifestação de interesse do próprio tribunal. "Desde que formalizamos nossa adesão à Meta 8 – ou seja, só neste ano de 2024 –, já julgamos 40 processos relacionados a violência doméstica e a casos de feminicídio, e hoje restam apenas 251 processos pendentes entre todos os que foram distribuídos até 2022. O cumprimento da meta reflete o compromisso do Tribunal da Cidadania com a promoção da igualdade e a erradicação de toda forma de violência baseada em gênero", afirmou a presidente.
A chefe da Assessoria de Gestão Estratégica do STJ, Elaine Nóbrega Borges, informou que, para auxiliar no cumprimento das metas que lhe são aplicáveis, o tribunal vem utilizando um painel estratégico que mostra aos gabinetes dos ministros todos os processos pendentes em cada uma delas. "Ao entrar nesse painel, os ministros têm acesso a quais são os processos vinculados aos assuntos que dizem respeito à meta. Assim, eles conseguem priorizar o julgamento e alcançar cada uma delas", explicou.
Nos últimos anos, já vinha aumentando na corte o ritmo do julgamento de processos sobre violência de gênero. Segundo a Coordenadoria de Governança de Dados e Informações Estatísticas do STJ, só nos últimos três anos, o tribunal julgou 13.866 processos relacionados ao tema, sendo 3.770 em 2021, 4.497 em 2022 e 5.599 em 2023. Desse total, 9.312, distribuídos até 2022, integram a Meta 8.
Esse crescimento fica mais evidente no longo prazo. Em 2009, quando o STJ começou a classificar processos com esse tema, foram distribuídos 41 e julgados apenas 6 (cerca de 15%). Em 2023, o número de processos distribuídos chegou a 6.485, dos quais 4.554 foram julgados no mesmo ano, correspondendo a cerca de 70% do total dos novos casos que chegaram naquele ano. Em 2023, ainda houve o julgamento de outros 1.045 processos, que foram distribuídos em anos anteriores.
Além do painel estratégico, alguns ministros organizaram seus gabinetes de maneira diferenciada para julgar os processos relacionados à Meta 8, como é o caso da ministra Daniela Teixeira. Segundo a ministra, tão logo chegam ao gabinete, os processos com essa temática são triados e encaminhados à análise de uma equipe responsável por assegurar prioridade em seu processamento.
Daniela Teixeira afirmou que o gabinete aplica a esses processos o Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero, observando as peculiaridades dos crimes contra mulheres e as diversas formas de violência que elas podem sofrer, para evitar a reprodução de estereótipos de gênero nas decisões.
"Por exemplo, nos processos de violência contra a mulher, eu tenho decidido que o juiz da localidade onde está a vítima é quem deve fixar as medidas protetivas cabíveis ao caso, sempre ouvindo a vítima antes. Entendo que a melhor solução para a segurança da mulher é ouvi-la, saber dela se ainda estão presentes as ameaças. Não acho razoável que eu decida, daqui de Brasília, apenas lendo as alegações do réu, sobre a segurança de uma mulher que está a milhares de quilômetros. Essas decisões não me trazem alegria, mas sim a sensação de que estou cumprindo o meu dever, analisando cada processo individualmente", declarou.
A ministra ainda destacou que priorizar o julgamento de processos relacionados à Meta 8 no STJ é fundamental, pois é um tema que implica violação dos direitos humanos. Ela planeja, inclusive, ultrapassar a meta em seu gabinete e chegar ao fim do ano com a conclusão do julgamento de todos os processos distribuídos até 2023, e não apenas até 2022.
Engajada na proteção dos direitos dos mais vulneráveis, Daniela Teixeira anunciou que, após o STJ cumprir a Meta 8, pretende sugerir ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ) "uma meta específica para julgar os processos que envolvem violência sexual contra crianças, o chamado estupro de vulnerável".
"Os números são assustadores e precisam ser estudados para que todos os poderes possam trabalhar harmonicamente para diminuir essa tragédia. Na triagem que realizamos no gabinete, encontramos apenas um processo de estupro de mulher e, infelizmente, 511 processos de estupro de vulnerável. Esse dado foi o que mais me chocou desde a minha chegada [ela tomou posse no tribunal em novembro último], e pretendo fazer um levantamento das condições dos processos para levar ao CNJ", declarou.
No cumprimento de sua missão de uniformizar a aplicação da legislação federal, o STJ tem proferido decisões que dão efetividade aos dispositivos e princípios instituídos no ordenamento jurídico para coibir a violência de gênero. Várias dessas decisões estão reunidas na mais nova edição de Jurisprudência em Teses, produzida pela Secretaria de Jurisprudência do STJ, com o título Julgamentos com Perspectiva de Gênero IV.
Entre os precedentes mais marcantes nessa área, a Terceira Seção definiu, no Tema 1.189 dos recursos repetitivos, que a vedação constante do artigo 17 da Lei 11.340/2006 (Lei Maria da Penha) impede a imposição, nos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, de pena de multa isoladamente, ainda que prevista de forma autônoma no tipo penal imputado.
O ministro Sebastião Reis Junior, relator, explicou que a intenção do legislador, ao impedir a aplicação isolada da pena de multa, foi maximizar a função de ##prevenção## geral das penas impostas em decorrência de crimes cometidos no contexto de violência doméstica e familiar contra a mulher, deixando claro para a coletividade que a agressão contra a mulher trará sérias consequências a quem a pratica, para além da esfera patrimonial.
No julgamento do AgRg no HC 808.882, a Sexta Turma decidiu que é inviável o afastamento da qualificadora do feminicídio pelo tribunal do júri mediante a análise de aspectos subjetivos da motivação do crime, dada a natureza objetiva da qualificadora, ligada à condição de sexo feminino.
O ministro Rogerio Schietti Cruz, relator, afirmou que a decisão tomada pelos jurados, ainda que não seja a mais justa ou a mais harmônica com a jurisprudência dominante, é soberana (artigo 5º, XXXVIII, alínea "c", da Constituição). Contudo, segundo o magistrado, tal princípio é mitigado quando os jurados proferem uma decisão em manifesta contrariedade às provas, casos em que o veredicto deve ser anulado pela instância revisora, e o réu submetido a novo julgamento perante o tribunal do júri.
"Desse modo, deveria haver sido reconhecida a qualificadora do feminicídio, uma vez que se tratou de homicídio praticado em contexto de violência doméstica e familiar contra a vítima", disse o relator.
Para a Quinta Turma, a aplicação da agravante prevista no artigo 61, inciso II, alínea "f", do Código Penal na condenação por lesão corporal em contexto de violência doméstica, por si só, não configura bis in idem.
Ao julgar o REsp 1.998.980, o ministro Joel Ilan Paciornik, relator, apontou que a figura qualificada ou a causa de aumento de pena previstas, respectivamente, nos parágrafos 9º e 10 do artigo 129 do Código Penal não incidem na mesma situação que a agravante genérica do artigo 61, inciso II, "f", não resultando, assim, em dupla punição pelo mesmo ato.
Segundo o relator, a causa de aumento busca punir mais gravemente o agente que pratica a lesão corporal utilizando-se das relações familiares ou domésticas, circunstância que torna a vítima mais vulnerável ao seu agressor e também eleva as chances de impunidade. Nesse contexto, o magistrado destacou que a vítima pode ser tanto homem quanto mulher, já que a ação não é movida pelo gênero do ofendido.
Por outro lado, o ministro explicou que a agravante genérica prevista no artigo 61, inciso II, alínea "f", visa punir o agente que pratica crime contra a mulher em razão de seu gênero, cometido ou não no ambiente familiar ou doméstico. "Ou seja, a aplicação conjunta da agravante e da causa de aumento pune o agressor pela violência doméstica contra a mulher", afirmou.
Entendimento parecido foi fixado no REsp 2.007.613, de relatoria do ministro Ribeiro Dantas. Nesse processo, a Quinta Turma entendeu que não há bis in idem na incidência da agravante do artigo 61, inciso II, alínea "e", do Código Penal – que tutela o dever de cuidado nas relações familiares – e da qualificadora do feminicídio.
Ribeiro Dantas ressaltou que a agravante apenas eleva a punição pela insensibilidade moral do agente que violou o dever de apoio mútuo existente entre parentes, enquanto a qualificadora se refere a situação distinta, qual seja, a violência praticada contra a mulher em contexto caracterizado por relação de poder e submissão.
"Logo, sendo distintas as condições valoradas nas diversas fases da dosimetria, não há se falar em bis in idem", concluiu.
Em outro julgamento relevante (AgRg HC 843.482), a Quinta Turma entendeu que, na hipótese de lesão corporal em contexto de violência doméstica, é possível a dispensa do exame de corpo de delito, caso existam outras provas idôneas da materialidade do crime.
O relator, ministro Reynaldo Soares da Fonseca, apontou que, no caso em julgamento, não foi feito exame pericial, mas a condenação do réu se baseou no depoimento detalhado da companheira agredida – o qual é particularmente importante quando se
trata de violência doméstica. No depoimento, a vítima informou com clareza o modo como foi
agredida e as datas dos fatos.
Além disso, de acordo com o ministro, foram incluídas no processo fotos das lesões no rosto da vítima e evidências trazidas por testemunhas – especialmente o relato de um policial, que disse ter visto a vítima logo após o crime e que ela lhe mostrou as lesões causadas pelos socos do agressor.
A manifestação da vítima sobre a revogação de medidas protetivas de urgência é irrelevante quando se discute a manutenção da prisão preventiva do acusado, pois a custódia cautelar, fundada na gravidade concreta da conduta, não está na esfera de disponibilidade da vítima de violência doméstica. Esse entendimento foi fixado pela Sexta Turma no julgamento do AgRg HC 768.265.
O relator do habeas corpus, ministro Rogerio Schietti Cruz, afirmou que a competência para analisar a necessidade e a adequação da prisão preventiva é reservada ao Poder Judiciário, de modo que não cabe à vítima decidir se abre mão da medida imposta ao acusado.
O magistrado ainda ressaltou que, conforme foi apontado pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG), o crime contra a integridade física da mulher, no contexto da Lei Maria da Penha, é de ação pública incondicionada (movida pelo Ministério Público sem a necessidade de pedido da vítima) e dispensa qualquer ato por parte da ofendida para ter andamento. Assim, segundo o ministro, o pedido superveniente da vítima para que sejam revogadas as medidas protetivas não é motivo suficiente para substituir a prisão por outras medidas cautelares.
Em 2022, ao julgar o AgRg no HC 697.993, a Quinta Turma fixou a tese segundo a qual, no contexto de violência doméstica contra a mulher, é possível aumentar a pena-base quando a intensidade da agressão extrapola a normalidade característica daquele tipo de crime.
No caso, um homem espancou sua companheira com um pedaço de madeira até ela perder os sentidos. Ao STJ, a defesa alegou que a pena-base foi fixada acima do mínimo legal de forma desproporcional. Sustentou que não foram observados os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, visto que o juízo de primeiro grau não teria apresentado motivos válidos para o aumento da pena-base.
O ministro Joel Ilan Paciornik ponderou que, como o agressor bateu na vítima com um pedaço de madeira até que ela perdesse os sentidos, a culpabilidade do ato extrapolou a previsão legal. Segundo o ministro, a culpabilidade, que corresponde ao grau de reprovabilidade da conduta, excedeu o nível comum do tipo penal, justificando a valoração negativa dessa circunstância prevista no artigo 59, caput, do Código Penal.
Para além da jurisprudência, a realidade social que motivou a Meta 8 tem sido uma forte preocupação do STJ em sua atuação institucional. Foi assim que o tribunal aderiu à Campanha Sinal Vermelho, de combate à violência doméstica, e vem se engajando, anualmente, na campanha 21 Dias de Ativismo pelo Fim da Violência contra a Mulher, na qual são desenvolvidas atividades internas e externas de conscientização sobre os vários cenários da violência de gênero.
Além disso, em 2020, a corte instituiu a Ouvidoria das Mulheres, que se tornou o primeiro canal especializado de escuta ativa desse tipo entre os tribunais brasileiros. Por meio dela, magistradas, servidoras, estagiárias e colaboradoras do STJ têm a oportunidade de apresentar sugestões, elogios, ##reclamações## e denúncias relacionadas à igualdade de gênero, à participação feminina e a casos de violência.
Em 2022, por meio da Instrução Normativa 15/2022, o STJ adotou uma cota para mulheres em situação de vulnerabilidade econômica, decorrente de violência doméstica e familiar, nos seus contratos de prestação de serviços. Segundo a ##instrução## normativa, os contratos de serviços contínuos com previsão de contratação de no mínimo 50 colaboradores devem reservar 4% das vagas para mulheres vítimas de violência doméstica.
A iniciativa, pioneira no Poder Judiciário, inspirou a Resolução 497/2023 do CNJ, que criou em todo o território nacional o Programa Transformação, com critérios para que os tribunais e os conselhos da Justiça reservassem vagas, nos contratos de prestação de serviços continuados e terceirizados, para as mulheres em condição de vulnerabilidade.
A resolução do CNJ ampliou a proposta da ##Instrução## Normativa 15/2022 e, além das vítimas de violência no contexto doméstico e familiar, incluiu outras classes de vulneráveis no programa, tais como mulheres trans e travestis, migrantes e refugiadas, mulheres em situação de rua, egressas do sistema prisional, indígenas, campesinas e quilombolas. Além disso, a reserva de vagas passou a ser de no mínimo 5% nos contratos que previam a contratação de pelo menos 25 colaboradores.
Ketlin Feitosa Scartezini, titular da Assessoria de Gestão Sustentável do STJ, participou tanto da construção do normativo do tribunal quanto do programa do CNJ. Para ela, o STJ deu um salto em sua condição de Tribunal da Cidadania ao ter inspirado uma norma como a Resolução 497/2023.
"Como órgão de Estado, devemos sempre fomentar e executar esse tipo de política pública social. Uma resolução que tem cunho obrigatório, como é o caso dessa que veio do CNJ, cria inúmeras possibilidades de emprego, ampliando o mercado de trabalho para as mulheres", afirmou.