Questões de gênero e tecnologia encerram primeiro dia do encontro internacional sobre integridade judicial
 
 
 
06/08/2024 20:34

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Discussões sobre igualdade de gênero no acesso ao Judiciário e sobre os avanços da tecnologia nos sistemas de justiça marcaram o encerramento do primeiro dia do Encontro Regional de Integridade Judicial para a América Latina e o Caribe, que teve início no Superior Tribunal de Justiça (STJ) na manhã desta terça-feira (6) e segue até quinta (8).

Na primeira sessão da tarde, um painel formado apenas por mulheres discutiu a integridade judicial e as questões de gênero. A mesa foi moderada pela presidente do STJ, ministra Maria Thereza de Assis Moura.

Segundo ela, a discriminação de gênero e outros estereótipos funcionam como "barreiras invisíveis", responsáveis por moldar o olhar social sobre o Sistema de Justiça. A ministra defendeu a capacitação de juízes e juízas para romper com a cultura de discriminação e a adoção de novas políticas para o combate ao problema.

Na visão de Vanessa Ruiz, juíza sênior do Tribunal de Apelações do Distrito de Colúmbia, nos Estados Unidos, a igualdade, a não discriminação e o acesso à Justiça são verdadeiros pilares da integridade judicial.

Para Ruiz – que também é ex-presidente da Associação Internacional de Juízas –, existe uma visão social de que os sistemas judiciais são "ultrapassados, fechados e corruptos", e esse tipo de pensamento pode ser modificado com a maior participação de outros grupos representativos no sistema judicial, entre eles as mulheres.

A juíza americana também comentou a importância da colaboração internacional em situações de perigo extremo contra as mulheres. Sobre o tema, ela lembrou que, no Afeganistão, após a retomada do poder pelo grupo radical Talibã, em 2019, pelo menos duas juízas foram assassinadas. Outras magistradas tiveram que fugir do país – uma delas, inclusive, foi abrigada pelo Brasil. "Elas estão vivas e são exemplos do que a comunidade internacional pode fazer", ressaltou.

México adotou protocolo de julgamento com perspectiva de gênero que foi exemplo para o Brasil

Margarita Beatriz Luna Ramos, ex-magistrada da Suprema Corte do México, demonstrou preocupação com os debates em andamento sobre mudança do sistema judicial em seu país, inclusive com a modificação na forma de ingresso dos membros da magistratura, que passaria a ser pelo voto popular.

Para Margarita Ramos, essas possíveis mudanças podem afetar até mesmo a atuação da Suprema Corte mexicana – tribunal que, segundo ela, foi decisivo para permitir a implementação de um protocolo de julgamento com perspectiva de gênero no país. A ministra Maria Thereza lembrou que o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) tomou o documento mexicano como exemplo para criar a versão brasileira do protocolo.

Margarita Ramos explicou que o protocolo mexicano tem duas partes principais: uma voltada ao desenvolvimento de políticas de inclusão e igualdade dentro do Poder Judiciário e outra dedicada a sistematizar a inclusão da perspectiva de gênero no contexto das decisões judiciais.

"A perspectiva de gênero se aplica por igual a todos. Não se destina apenas às mulheres, mas a toda a sociedade, para que as pessoas tenham os mesmos direitos e oportunidades", afirmou.

A presidente da Suprema Corte da Guiana e representante da Associação Caribenha de Oficiais Judiciais (CAJO), Roxane George, apresentou um panorama da atuação da associação nos países do Caribe. Ela destacou que diversas iniciativas de treinamento e de sensibilização têm sido conduzidas nessas nações para o tratamento de temas como os direitos das mulheres, a violência sexual e a perspectiva de gênero como um todo.

No contexto específico da Guiana, Roxane George destacou ações para aproximação entre a sociedade e o Judiciário, como dias de abertura dos tribunais ao público e produção de material para rádio e TV. Por outro lado, ela apontou desafios como a persistência de uma cultura tradicional caribenha que tem dificuldades em lidar com alguns temas, como os direitos LGBT+.

A conclusão do painel foi feita pela ministra do Tribunal Superior do Trabalho (TST) Kátia Arruda. Ela apresentou números sobre a presença feminina em instituições brasileiras e lembrou que, em 130 anos de história, o Supremo Tribunal Federal (STF) contou com apenas três magistradas.

No âmbito da Justiça do Trabalho, a ministra citou o aumento de processos relacionados a questões de gênero e deu um exemplo de como a cultura predominante na sociedade pode ser percebida em tais casos: um desses processos tratava da história de um casal que trabalhava na mesma empresa, até que a esposa sofreu violência doméstica por parte do marido; para não manter o casal em conflito na empresa, o patrão decidiu demitir a mulher – a vítima – e manter o marido – o agressor.

Para a ministra, não é possível haver mudança na Justiça se ela não acontecer em um contexto social mais amplo. "A mudança deve ocorrer na sociedade e será refletida pelo Judiciário", disse.

Tecnologia foi caminho adotado pelo Brasil para lidar com grande volume de processos

O primeiro dia do encontro foi concluído com um debate sobre os efeitos das novas tecnologias e da inteligência artificial (IA) no Judiciário. A moderação ficou a cargo de Tatiana Veress, oficial de ##prevenção## ao crime e justiça criminal do Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC) no Brasil.

O corregedor nacional de Justiça, ministro Luis Felipe Salomão, lembrou que o Brasil tem atualmente 83 milhões de processos em tramitação, com cerca de 30 milhões de novas ações a cada ano.

Para enfrentar esse cenário, o corregedor lembrou que, nas últimas décadas, o Judiciário brasileiro chegou a quase 100% de processos digitalizados, fato que refletiu positivamente no tempo de tramitação. Um exemplo citado pelo ministro foi o Tribunal Regional Federal da 3ª Região (TRF3), no qual um processo demorava, em média, 14 anos para ser concluído, prazo que foi reduzido para quatro anos após a digitalização dos autos.

Em relação ao uso da IA na Justiça brasileira, Salomão destacou iniciativas como a adoção de técnicas de reconhecimento facial no sistema criminal, além de ferramentas para gestão de precedentes qualificados e identificação de litigância predatória.

O presidente do Tribunal de Justiça do Caribe, Adrian Saunders, explicou que, diferentemente do Brasil, o desafio enfrentado pela corte regional não diz respeito ao volume de processos, mas a garantir a integridade dos arquivos digitais e mantê-los acessíveis.

Saunders destacou a importância de que, ao lado da introdução das novas tecnologias, haja um treinamento especial dos juízes e das equipes responsáveis pela administração judicial, além de um "massivo investimento" em cibersegurança.

Países latino-americanos enfrentam desafios semelhantes na Justiça

O presidente da Suprema Corte das Bahamas, Ian Winder, comentou que as características geográficas peculiares do país – formado por mais de 700 ilhas e ilhotas – trouxeram desafios adicionais para a implementação de novas tecnologias no sistema judicial.

Segundo Winder, as Bahamas têm utilizado tecnologias de IA para tarefas como a transcrição de áudio ou vídeo para textos, diminuindo a necessidade de transcrições manuais nesses casos. Ainda de acordo com o magistrado, a digitalização atenuou as dificuldades relacionadas ao transporte de processos físicos entre tribunais e à retirada dos autos pelos advogados.

Vice-presidente da Suprema Corte da Colômbia, Octavio Augusto Tejeiro Duque apresentou uma série de perguntas sobre o potencial conflito entre a implementação de novas tecnologias e o respeito à ética, à integridade e à transparência.

Ele questionou, por exemplo, se seria ético que um juiz, munido das novas tecnologias, trabalhasse em sua própria casa, e não em um edifício público construído especialmente para representar o Judiciário para a sociedade. Outro questionamento foi sobre o uso da IA em fases do processo como a valoração da prova e a ##sentença##.

O painel foi finalizado por Alberto Martínez Simón, integrante da Suprema Corte do Paraguai, para quem os sistemas de justiça latino-americanos são muito parecidos e, por isso, passam por processos e problemas semelhantes.

Segundo Martínez Simón, é notória a desconfiança social em relação à atuação do Judiciário, e a introdução de novas tecnologias busca reverter esse quadro. Entre as inovações implementadas no Paraguai, ele mencionou a virtualização de todos os serviços judiciais e a possibilidade de controle direto da parte em relação à tramitação processual – sem a necessidade da intermediação do advogado em todas as hipóteses.

Na visão do magistrado paraguaio, a tecnologia vai ajudar a recuperar a confiança social na Justiça, "mas não nesta geração", porque é necessário tempo para mostrar ao cidadão que o Judiciário pode ser confiável e eficiente. "Não podemos apenas ser independentes, mas também devemos ser percebidos como independentes", resumiu.

Encontro reúne autoridades judiciais de 21 países

O Encontro Regional de Integridade Judicial para a América Latina e o Caribe conta com a participação de autoridades judiciais brasileiras e dos seguintes países: Argentina, Bahamas, Belize, Bolívia, Chile, Colômbia, Costa Rica, El Salvador, Equador, Guatemala, Guiana, Honduras, Jamaica, México, Nigéria, Paraguai, Peru, República Dominicana, Trindade e Tobago e Uruguai.

Promovido em parceria com o UNODC, o encontro será realizado em formato de conferência com sessões temáticas interativas, abordando tópicos como justiça digital; uso de novas tecnologias e inteligência artificial; igualdade de gênero e empoderamento das mulheres; confiança pública no Judiciário e transparência; e independência judicial como pilar do Estado de Direito.

Ao final da conferência, haverá uma sessão plenária em que será adotada uma Declaração de Brasília sobre Integridade Judicial, identificando desafios comuns e fazendo recomendações aos Judiciários da região.

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