Discussões sobre o fortalecimento das democracias, as mudanças trazidas pela inteligência artificial e a proteção de dados marcaram o encerramento do Fórum Internacional Cortes em Conexão, realizado nesta quinta-feira (11) no Superior Tribunal de Justiça (STJ). O evento, que integra a programação comemorativa dos 35 anos de instalação do tribunal, teve início pela manhã, com debates entre magistrados e especialistas convidados dos mais de 30 países que estiveram presentes.
No período da tarde, os tribunais internacionais de direitos humanos e a preservação das democracias foram o tema do terceiro painel do fórum, moderado pela presidente do STJ, ministra Maria Thereza de Assis Moura, e pelos ministros Sebastião Reis Junior e Rogerio Schietti Cruz.
Participaram como painelistas o vice-presidente da Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), Rodrigo Mudrovitsch; o professor Paulo Sérgio Pinto de Albuquerque, ex-juiz da Corte Europeia de Direitos Humanos; e o presidente da Suprema Corte da Eslováquia, Ján Sikuta.
A ministra Maria Thereza questionou qual seria a obrigatoriedade da decisão tomada pela Corte Interamericana perante países que subscreveram a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, mas que não foram parte do caso em julgamento.
Segundo Rodrigo Mudrovitsch, a convenção é uma só e vincula a todos os países que soberanamente optaram por aderir à jurisdição contenciosa da CIDH. "Esse julgamento produz uma dupla consequência: a primeira é a coisa julgada, que é obrigatória ao Estado em relação ao qual ela foi proferida; a segunda é o precedente, que é a coisa interpretada, ou seja, a dimensão do standard que é fixado no caso concreto, mas que emana e vincula os outros países, ainda que não sejam partes naquele processo específico", explicou.
Ao ser questionado pelo ministro Sebastião Reis Junior a respeito da efetividade das decisões tomadas pelas cortes internacionais, o professor Paulo Sérgio Pinto de Albuquerque lembrou que só o entendimento entre as jurisdições nacionais e internacionais pode garantir uma maior proteção dos direitos humanos.
Na sua avaliação, há mais exemplos de cumprimento das decisões proferidas do que o contrário. "Por razões políticas, há Estados que não aceitam determinadas decisões, especialmente as que se referem às minorias, cujos direitos a maioria tem dificuldade de aceitar. Só efetivamente um diálogo de boa-fé entre a jurisdição internacional e a nacional é que pode garantir a proteção dos direitos humanos", completou.
O ministro Rogerio Schietti ponderou a respeito de um problema na Justiça brasileira, que é a demora no julgamento dos processos – fato que já gerou condenação do Brasil pela CIDH. De acordo com o presidente da Suprema Corte da Eslováquia, Ján Sikuta, esse também é um problema enfrentado em seu país, onde a demora depende da dificuldade do caso e do número de instâncias pelas quais o processo pode tramitar.
Por fim, a ministra Maria Thereza destacou que o STJ costuma examinar as decisões da CIDH e da Corte Europeia de Direitos Humanos, trazendo para a discussão o controle de convencionalidade, como forma de fortalecer a aplicabilidade dessas decisões pelos juízes brasileiros.
No quarto painel, os ministros João Otávio de Noronha e Daniela Teixeira mediaram um debate sobre inteligência artificial (IA) no Poder Judiciário. Os convidados foram o vice-presidente do Supremo Tribunal de Justiça de Portugal, juiz conselheiro Nuno Gonçalves; o presidente do Tribunal Superior do Trabalho (TST), ministro Lelio Bentes Corrêa; e a ministra do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) Edilene Lôbo.
Para o ministro Noronha, a IA é fundamental para o desenvolvimento do país e tem o potencial de trazer mais qualidade de vida à população: "A inteligência artificial vai nos levar a outras dimensões com muito mais segurança", projetou.
Em seguida, a ministra Daniela Teixeira leu trechos de um texto sobre o uso da IA no Poder Judiciário do Brasil e de Portugal, inteiramente criado por uma ferramenta que utiliza essa tecnologia.
"Essa proposta de abertura para nosso painel foi feita com apenas algumas instruções fornecidas à ferramenta. É possível que a inteligência artificial redija votos com alto índice de acerto no futuro", afirmou a magistrada.
O ministro Lelio Bentes Corrêa lembrou que a inteligência artificial já é uma realidade na área de gestão do acervo processual do TST. Por meio do sistema Bem-te-vi, o ministro explicou que o tribunal vem acelerando o exame de recursos, com a eliminação de etapas burocráticas.
Questionado pela ministra Daniela Teixeira sobre aspectos subjetivos que envolvem a Justiça trabalhista – como a conjuntura social e a necessidade de um olhar mais sensível diante de cada caso analisado –, o presidente do TST disse que a inteligência artificial ainda precisa evoluir.
"Nada substitui a sensibilidade humana. Na Justiça do Trabalho, a compreensão conjunta da realidade do capitalismo e da necessidade de proteção aos direitos fundamentais é uma atividade que nenhuma inteligência artificial é capaz de exercer com precisão", ressaltou.
A ministra Edilene Lôbo destacou a importância das primeiras regulações sobre IA desenvolvidas no âmbito da Justiça eleitoral – que serão aplicadas já nas eleições municipais deste ano – e alertou para o chamado "racismo algorítmico", um problema que vem surgindo com o uso dessas novas ferramentas.
"Os algoritmos dessas ferramentas são projetados por desenvolvedores brancos de grandes centros urbanos. Então, a partir da análise de dados, eles indicam um grau de periculosidade e reincidência criminal para pessoas negras. É fundamental que haja diversidade entre os desenvolvedores para inteligência artificial no Poder Judiciário", opinou a ministra.
Segundo o vice-presidente do Supremo Tribunal de Justiça de Portugal, a reflexão da ministra Edilene Lôbo é apenas um dos desafios impostos pela IA.
"Por isso, a ética é fundamental neste momento. Há um conflito entre a ciência e os direitos fundamentais. Caberá a nós, enquanto ainda não há uma regulação clara, resolver essas questões que são postas", declarou Nuno Gonçalves.
O último painel do fórum internacional foi dedicado ao tema da proteção de dados pessoais no Poder Judiciário. Com a moderação da ministra Isabel Gallotti e do ministro Ribeiro Dantas, o painel teve a participação de Miriam Wimmer, diretora da Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD), e de Wenceslao Olea Godoy, membro do Tribunal Supremo e do Conselho-Geral do Poder Judicial da Espanha.
A ministra Isabel Gallotti lembrou que, no âmbito do Judiciário, a proteção de dados pode ser analisada pelo viés dos julgamentos de casos que envolvam a violação de dados sensíveis, mas também é necessário levar em conta que a Justiça recolhe e trata dados com outras finalidades.
Sobre esse último aspecto, Gallotti comentou que a Justiça colhe uma gama importante de informações – a exemplo dos dados das partes do processo – e, por isso, precisa ter responsabilidade sobre a forma correta de armazená-los e utilizá-los.
Para o ministro Ribeiro Dantas, além dos dados cadastrais básicos da pessoa – endereço e documentos, por exemplo –, o Judiciário acaba tendo acesso a histórias de vida de cada envolvido, detalhes esses que, muitas vezes, as pessoas não gostariam de ver expostos publicamente.
Ribeiro Dantas também lembrou que, na era dos processos físicos, os interessados em determinada ação precisavam se deslocar ao tribunal e obter autorização de acesso aos autos. No mundo moderno, com o processo digital, a consulta a dados é muito mais fácil. "E mais: eles ficam na internet para sempre", alertou.
Miriam Wimmer, da ANPD, lembrou que, assim, como ocorreu com a publicação da Lei de Acesso à Informação, em 2011, a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD) também gerou certo "pânico" social, em razão das dúvidas que surgiram sobre a forma de tratamento dos dados nas diferentes esferas. Ela ressaltou, porém, que a LGPD é desenhada para estruturar um sistema de mitigação de riscos.
Wimmer lembrou as possibilidades tecnológicas à disposição do Judiciário nas tarefas jurisdicionais e administrativas que envolvem o tratamento de dados, assim como os riscos relacionados a essa tarefa, e também destacou a possibilidade de um estudo conjunto entre a ANPD e o Judiciário – possivelmente no âmbito do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) – para se aprofundarem no tema.
Encerrando o painel, o magistrado espanhol Wenceslao Olea Godoy citou diversos casos que tramitaram na Justiça da Espanha e de outros tribunais da Europa envolvendo a questão da publicação de dados pessoais. Mesmo nos processos em que esse não é o tema central, apontou, há sempre o risco de divulgação indevida. E comentou que, em uma ação de indenização por atraso de voo, por exemplo, os dados sobre a origem e o destino da viagem podem acabar sendo divulgados, trazendo a público uma informação de cunho pessoal da parte.
Ao dividir os dados à disposição da Justiça em jurisdicionais e não jurisdicionais, Godoy reforçou que, no tocante aos dados jurisdicionais, quem deve exercer a fiscalização de seu tratamento não é o Poder Executivo, mas o próprio Judiciário, sob pena de violação da separação de poderes. O magistrado citou que, na Espanha, foi criada uma agência de proteção de dados conduzida pelos próprios juízes.