A ação penal no Brasil, em regra, é pública ou sigilosa? A resposta mais simples é citar o princípio da publicidade dos atos processuais, previsto no artigo 5º, inciso LX, da Constituição Federal, segundo o qual a restrição ao caráter público dos processos só é justificável para proteção da intimidade ou em prol do interesse social. Entretanto, o dia a dia forense mostra que, na verdade, existem tantas ações criminais em tramitação sob segredo de justiça que a exceção, às vezes, pode soar como regra.
Muitas explicações são possíveis para esse quadro, entre elas a amplitude de termos como "intimidade" ou "interesse social" – os requisitos constitucionais para que a ação seja tratada como sigilosa. É possível que o segredo processual tenha relação com o tipo de crime (em um processo sobre estupro, por exemplo, existe a preocupação de preservar a intimidade da vítima) ou com a necessidade de preservar informações protegidas constitucionalmente (resultantes, por exemplo, da quebra de sigilos bancário ou fiscal). Também há sigilo nas situações em que a publicidade pode colocar em risco a colheita de provas.
Entre a publicidade como regra e o segredo como exceção, está a Justiça, à qual incumbe avaliar a pertinência – ou não – de impor o sigilo nos autos. O Superior Tribunal de Justiça (STJ) já se posicionou em diversas situações nas quais a restrição à publicidade em casos criminais era questionada – seja para mantê-la, seja para afastá-la.
Conforme explicou o ministro Francisco Falcão na APn 1.057, além do artigo 5º, inciso LX, também o artigo 93, inciso IX, da Constituição impõe que todos os julgamentos do Judiciário sejam públicos, podendo haver limitação da publicidade para a prática de determinados atos, quando for necessário preservar a intimidade dos interessados, mas desde que não seja ##prejudicado## o interesse público à informação.
"O sigilo, portanto, configura situação excepcional, razão pela qual o seu deferimento deve passar pelo crivo da ponderação dos princípios constitucionais, de acordo com as particularidades do caso concreto", completou.
No caso dos autos, segundo o ministro, os réus apresentaram argumento genérico de que a decretação do sigilo seria necessária para a proteção da sua segurança e para que não tivessem "suas vidas publicamente devassadas" e as investigações não se tornassem "verdadeiras penas antecipadas". Contudo, para o relator, esses argumentos não eram suficientes para afastar a regra da publicidade processual.
No mesmo sentido, em caso analisado pela Quinta Turma, o ministro Jorge Mussi (aposentado) apontou que, embora seja possível restringir a divulgação e o acesso a dados de processos em andamento, essa limitação é restrita às hipóteses nas quais a preservação da intimidade se sobreponha ao interesse público.
"O sigilo dos dados de um processo judicial não é direito subjetivo absoluto dos envolvidos. Ao contrário, interpretando-se a norma inserta no artigo 792 do Código de Processo Penal, chega-se à conclusão de que a regra, para os processos regidos por esse diploma, é a da publicidade dos atos, que só será restringida nas hipóteses em que o acesso irrestrito puder resultar em escândalo, inconveniente grave ou perigo de perturbação da ordem", afirmou.
O artigo 234-B do Código Penal estabelece que as ações relativas a crimes contra a dignidade sexual devem correr em segredo de justiça.
Na Sexta Turma, os ministros analisaram pedido do Ministério Público (MP) para que, em processo sobre homicídio, estupro de vulnerável e ocultação de cadáver, a sessão do tribunal do júri não fosse realizada sem a presença de público, conforme havia decidido o juízo de primeiro grau. Na visão do MP, o público deveria ser retirado do recinto apenas durante o depoimento de uma testemunha adolescente, também vítima de abusos, mantendo-se a publicidade do restante da sessão do júri.
A relatora, ministra Laurita Vaz (aposentada), destacou que, segundo o tribunal de segunda instância, o fato de a vítima ter morrido não afastava a necessidade da preservação de sua imagem e dignidade. Além disso, seria preciso tomar o depoimento da testemunha adolescente da forma menos traumática possível.
De acordo com a ministra, o tribunal de origem se posicionou em consonância com a jurisprudência do STJ, "segundo a qual, conquanto o princípio constitucional da publicidade dos atos processuais seja a regra, este é passível de sofrer restrições para, tal qual no caso concreto, preservar o interesse público ou a integridade e a intimidade das partes".
Em processo sobre suposto crime de divulgação de pornografia infantil, a Quinta Turma analisou pedido do réu para que seu nome completo fosse retirado do sistema de informações da Justiça Federal (RMS 49.920).
Para o ministro Reynaldo Soares da Fonseca, relator do recurso em mandado de segurança, ainda que a Resolução 121/2010 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) autorize a restrição do acesso às informações processuais em ações sigilosas, a regra não pode se sobrepor ao princípio constitucional da publicidade.
Segundo o ministro, não configura violação à intimidade a identificação, pelo nome completo, de réu maior de idade em ação penal. "Vê-se, assim, que o interesse público em acompanhar a resposta estatal na repressão de crimes é, também, perfeitamente legítimo e se sobrepõe, como regra, ao direito do réu de proteger seu nome sob sigilo", concluiu.
Em habeas corpus julgado pela Sexta Turma em 2010 (HC 148.723), os ministros analisaram o pedido de nulidade de uma ação penal porque, segundo a defesa, ela teria tramitado indevidamente sob segredo de justiça. Para a defesa, o trâmite sigiloso do processo teria violado o direito do réu de ser processado e julgado publicamente. Assim – acrescentou –, não tendo sido observada a regra constitucional, a nulidade do processo seria absoluta e o prejuízo, presumido.
A relatora, ministra Maria Thereza de Assis Moura, afirmou que, em nenhuma das fases da ação penal, a defesa impugnou o seu processamento em segredo. Na apelação, por exemplo, a tese defensiva foi de absolvição e, alternativamente, de exclusão da agravante de reincidência.
A defesa só veio a suscitar a nulidade em habeas corpus ajuizado após o julgamento do recurso pelo tribunal de origem – o que, segundo a relatora, impõe o reconhecimento da preclusão da matéria.
Adicionalmente, a ministra observou que, segundo informações do processo, o trâmite em sigilo não trouxe nenhum prejuízo à defesa, a qual teve acesso normal aos autos, não havendo alegação em sentido contrário.
Mesmo que o inquérito policial esteja em sigilo para garantir a efetividade das investigações, a Sexta Turma considerou que a vítima ou seus familiares podem ter acesso aos elementos de prova que já foram colhidos e documentados.
O caso chegou ao STJ após as instâncias ordinárias negarem o pedido de acesso às provas do inquérito pelas vítimas, sob o argumento de que a autorização resultaria em acesso a dados sigilosos de terceiros, o que, na prática, acabaria por eliminar o segredo dos autos. O tribunal de origem ainda apontou que o artigo 20 do Código de Processo Penal, em exceção ao princípio da publicidade, prevê que a autoridade policial deve assegurar, no inquérito, o sigilo necessário à elucidação dos fatos.
Relator do recurso em mandado de segurança, o ministro Rogerio Schietti Cruz comentou que, embora a finalidade do sigilo seja proteger o inquérito de interferências externas e garantir a eficácia da investigação, a jurisprudência dos tribunais superiores entende que o segredo tem caráter relativo em relação às diligências finalizadas e documentadas na investigação.
"Compreende-se, em suma, que o sigilo do inquérito não pode ser evocado para obstaculizar direitos e garantias fundamentais", completou.
Schietti também reforçou que, de acordo com a Súmula Vinculante 14, é direito do defensor, no interesse do representado, ter acesso amplo aos elementos de prova que, documentados em procedimento investigatório, tenham relação com o exercício do direito de defesa.
Na mesma linha, em recurso em mandado de segurança julgado pela Quinta Turma (RMS 55.790), o ministro Jorge Mussi (aposentado) apontou que a decretação de sigilo, mesmo em caso de inquérito, depende da apresentação de razões fundamentadas que sustentem essa restrição, sob pena de inversão do princípio constitucional de ampla publicidade dos atos e das decisões administrativas e judiciais.
"Esse entendimento é o que melhor se coaduna com o modelo democrático adotado pelo constituinte de 1988, distanciando-se de sistemas inquisitoriais típicos de regimes autoritários, nos quais o investigado é mero objeto das ações de repressão do Estado", apontou Mussi.