Celebrado em 19 de abril, o Dia dos Povos Indígenas destaca a luta pelos direitos e pela valorização da cultura dos brasileiros originários. Segundo o censo de 2022, o Brasil tem mais de 1,6 milhão de indígenas, o que representa 0,83% do total de habitantes do país. A maior parte (51,25%, ou 867,9 mil pessoas) vive na Amazônia Legal, região formada pelos estados do Norte, Mato Grosso e parte do Maranhão.
Pressionados desde o início da colonização pela ocupação de suas terras e pela destruição de suas tradições, pelo extermínio físico e cultural, os indígenas demandam atenção especial do poder público. Cientes dessa realidade, os dirigentes dos tribunais brasileiros, sob a coordenação do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), decidiram incluir o tema dos direitos indígenas entre as Metas Nacionais do Poder Judiciário para 2024.
No 17º Encontro Nacional do Poder Judiciário, realizado em dezembro do ano passado, em Salvador, foi estabelecido que a Meta 10, relacionada ao julgamento das ações ambientais, passaria a contemplar também os processos sobre direitos das comunidades indígenas e quilombolas. Especificamente no Superior Tribunal de Justiça (STJ), a meta é julgar até 31 de dezembro deste ano, de todos os processos distribuídos até 31 de dezembro de 2023, 75% dos que tratam de questões ambientais, 75% dos que tratam de direitos dos povos indígenas e 75% dos relacionados aos direitos das comunidades quilombolas.
Até o momento, o tribunal cumpriu 27,91% da meta referente aos povos indígenas: julgou nove dos 48 processos distribuídos até o ano passado.
Para auxiliar no cumprimento das metas, facilitando o gerenciamento do acervo processual, o STJ passou a identificar, em seus sistemas informatizados, todos os processos judiciais relacionados a políticas públicas e prioridades legais – como os que tratam de direitos indígenas.
A inclusão dessas marcações na autuação dos processos, além de permitir levantamentos estatísticos, serve para subsidiar a adoção de estratégias relacionadas aos direitos humanos e aos objetivos de desenvolvimento sustentável da Agenda 2030 da Organização das Nações Unidas.
Os
processos sobre povos indígenas que chegam ao STJ envolvem os mais variados
temas – como questões previdenciárias, a proteção da infância e os direitos à
saúde e à terra.
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Em 2023, a Primeira Seção aprovou a Súmula 657, que estabelece o direito da indígena menor de 16 anos ao salário-maternidade, quando atendidos os requisitos de segurada especial no Regime Geral da Previdência Social (RGPS) e do período de carência.
Em um dos precedentes que deram origem ao enunciado, o REsp 1.650.697, o Ministério Público Federal (MPF) ajuizou ação civil pública contra o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) para garantir às indígenas gestantes, ainda que menores de 16 anos, o direito ao salário-maternidade.
O relator do caso no STJ, ministro Mauro Campbell Marques, lembrou que a Constituição de 1988, a Convenção sobre os Povos Indígenas e Tribais de 1989 – ratificada pelo Brasil em 2002 pelo Decreto Legislativo 143 – e o Estatuto do Índio garantem aos povos indígenas o mesmo tratamento conferido aos demais trabalhadores, no que se refere aos direitos previdenciários.
Ao lembrar a vedação constitucional do trabalho para menores de 16 anos, o relator ponderou que as regras de proteção da criança e do adolescente não podem ser utilizadas com a finalidade de restringir direitos, pois, do contrário, os colocariam em situação ainda mais vulnerável, afastando a proteção social garantida pelo ordenamento jurídico.
Para o ministro, é importante não estimular o trabalho do menor de 16 anos, que deve ter a educação como prioridade. Ele lembrou, contudo, que a realidade socioeconômica de muitas famílias ainda propicia o trabalho precoce de crianças e adolescentes.
"Nos casos em que ocorreu, ainda que de forma indevida, a prestação do trabalho pela menor de 16 anos, é preciso assegurar a essa criança ou adolescente, ainda que indígena, a proteção do sistema previdenciário, desde que preenchidos os requisitos exigidos na lei, devendo ser afastado o óbice etário", concluiu.
Em junho de 2022, a Primeira Turma manteve decisão que estabeleceu o prazo de até um ano para que a União e a Fundação Nacional do Índio (Funai) – hoje rebatizada Fundação Nacional dos Povos Indígenas – destinassem área para a sobrevivência física e cultural do grupo indígena Fulkaxó, que estava em conflito com a etnia Kariri-Xocó, com a qual dividia o mesmo território no município de Porto Real do Colégio (AL).
Para o colegiado, o Poder Judiciário pode determinar, diante de injustificável inércia estatal, que o Executivo adote medidas necessárias à concretização de direitos constitucionais dos indígenas, razão pela qual não se poderia falar, no caso julgado, em violação do princípio da separação dos poderes.
O recurso teve origem em ação civil pública movida pelo MPF contra a União e a Funai para exigir a conclusão do processo administrativo em que os Fulkaxós solicitaram a adoção de providências urgentes para garantia de sua sobrevivência. O MPF também pediu que fossem adquiridas terras em benefício desse grupo, ante a impossibilidade de convivência pacífica com os indígenas da etnia Kariri-Xocó (da qual os primeiros se originam).
Para o ministro Gurgel de Faria, relator, a questão em debate dizia respeito à obrigação de a União e a Funai criarem uma reserva indígena para o povo Fulkaxó, nos termos dos artigos 26 e 27 da Lei 6.001/1973.
O ministro observou que, de acordo com o artigo 20, parágrafo 1º, "a", da Lei 6.001/1973, as reservas indígenas "poderão ser instituídas em propriedade da União, bem como ser adquiridas mediante compra, doação de terceiros ou desapropriação, na eventualidade de não se verificar a tradicionalidade da ocupação indígena ou de se constatar a insuficiência de terra demarcada, sendo possível, ainda, a intervenção do ente federal em terra indígena para a resolução de casos excepcionais, como os de conflito interno irreversível entre grupos tribais".
Nas ações relacionadas à destituição do poder familiar e à adoção de crianças ou adolescentes indígenas – ou cujos pais são de origem indígena –, é obrigatória a intervenção da Funai, para assegurar que sejam consideradas e respeitadas as identidades social e cultural do povo indígena e que o menor seja colocado, de forma prioritária, no seio de sua comunidade ou junto de membros da mesma etnia.
A orientação, baseada no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), foi estabelecida pela Terceira Turma ao analisar a ação em que uma mulher indígena foi destituída do poder sobre suas duas filhas, após o Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul (TJMS) concluir que houve abandono material e psicológico. Segundo o Ministério Público, a mãe era alcoólatra e usuária de drogas, e recusou o apoio da assistência social.
"Por se tratar de órgão especializado, é a Funai que reúne as melhores condições de avaliar a situação do menor de origem indígena, não apenas à luz dos padrões de adequação da sociedade em geral, mas, sobretudo, a partir das especificidades de sua própria cultura, o que influencia, inclusive, na escolha de uma família substituta de tribo que possua maiores afinidades com aquela da qual se origina o menor", afirmou a ministra Nancy Andrighi, relatora do caso julgado sob segredo de justiça.
O STJ também já decidiu que a adoção de criança indígena por membros de sua própria comunidade ou etnia é prioritária e recomendável para proteger sua identidade social e cultural, porém não é possível excluir a adoção fora desse contexto, pois o direito fundamental de pertencer a uma família se sobrepõe ao de preservar a cultura.
Em um julgamento realizado sob segredo de justiça, em 2017, a Terceira Turma manteve a adoção de uma criança indígena por uma família não indígena, uma vez que a mãe biológica abriu mão do poder familiar e não foi possível o acolhimento do menor pela sua família de origem.
"Se a criança não conseguir colocação em família indígena, ela não deve ser mantida em uma unidade de abrigo até sua maioridade, sobretudo existindo pessoas não indígenas interessadas em sua adoção", disse o ministro Marco Aurélio Bellizze, relator do caso.
A Súmula 140 do STJ estabelece a competência da Justiça estadual para processar e julgar crime em que o indígena figure como autor ou vítima. Entretanto, quando houver disputa em torno de direitos indígenas, a competência será da Justiça Federal.
Esse entendimento foi aplicado pela Terceira Seção no julgamento do CC 123.016, que tratou da disputa entre indígenas de uma aldeia na ilha do Bananal (TO). O conflito foi suscitado pelo juízo federal após o juízo estadual declinar da competência para julgar uma acusação de calúnia e difamação, feita por um índígena contra outro da mesma aldeia.
Conforme o juízo federal, seria o caso de aplicar a Súmula 140, mas o juízo estadual alegou que os fatos decorreram de disputa por direitos indígenas, uma vez que haveria entre as partes uma competição pelo posto de cacique.
O relator do caso, ministro Marco Aurélio Bellizze, explicou que, em regra, a Súmula 140 define o julgamento de crimes com envolvimento de indígenas. Contudo, ele lembrou que a Constituição ressalva, em seu artigo 109, inciso XI, a competência da Justiça Federal para julgar "disputa sobre direitos indígenas".
O ministro observou que esse dispositivo deve ser interpretado de acordo com a redação do artigo 231 da Constituição, segundo o qual o conceito de direitos indígenas "é aquele referente às matérias que envolvam organização social dos índios, costumes, línguas, crenças e tradições, bem como os direitos sobre as terras que tradicionalmente ocupam".
No caso, o ministro verificou que não se tratava da prática de crimes de calúnia e difamação de forma isolada, isto é, de interesse apenas dos envolvidos no caso, mas sim de fatos que estavam ligados a uma disputa por direitos indígenas, atingindo os interesses coletivos de todo o povo Javaé, o que atraía a competência da Justiça Federal.
No julgamento do REsp 1.064.009, a Segunda Turma estabeleceu que a legitimidade do Ministério Público para propor ação civil pública em defesa da saúde dos indígenas, com fundamento no artigo 129, V, da Constituição e no artigo 6º da Lei Complementar 75/1993, é a mais ampla possível.
O recurso teve origem em ação proposta pelo MP depois que a Fundação Nacional de Saúde (Funasa) negou atendimento odontológico para uma indígena, pelo fato de ela não mais residir na Aldeia Xapecó, em Santa Catarina. O MP requereu o atendimento da indígena, bem como o acesso – dela e de todos os indígenas que estivessem morando fora da reserva – às ações de assistência à saúde prestadas pela Funasa aos moradores da aldeia.
Condenadas, a União e a fundação recorreram ao STJ sustentando que o MP não teria legitimidade ativa para a ação e que não haveria disposição legal que as obrigasse a prestar assistência à saúde de indígenas não aldeados, os quais deveriam buscar atendimento no SUS.
Seguindo o voto do relator, ministro Herman Benjamin, a Segunda Turma reconheceu a legitimidade do MP e manteve a decisão que assegurou a toda a comunidade indígena, independentemente do local de residência, a assistência médico-odontológica prestada pela Funasa, por entender que compete ao poder público assegurar o direito à vida saudável da população indígena.
A alteração do nome de registro para um nome indígena também deve obedecer à legislação sobre a matéria, declarou a Quarta Turma ao negar provimento ao REsp 1.927.090. Para o colegiado, as hipóteses que relativizam o princípio da definitividade do nome, elencadas na Lei de Registros Públicos, não contemplam a possibilidade de exclusão total dos sobrenomes materno e paterno e a sua substituição por outros, de livre escolha do interessado e sem comprovação de qualquer relação com as linhas ascendentes, com a concomitante alteração também do prenome registrado.
No recurso, uma mulher pretendia alterar o seu registro civil para adotar um nome indígena. Segundo disse, seus pais eram de origem indígena e, com o passar dos anos, ela foi se aprofundando no conhecimento sobre seus antepassados, da etnia Puri, e começou a seguir suas tradições.
Contudo, nem o juízo de primeiro grau nem o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ) entenderam que haveria possibilidade legal para a alteração pretendida.
Ao STJ, ela argumentou que, nos termos dos artigos 2º e 3º da Resolução Conjunta 3/2012, do CNJ e do Conselho Nacional do Ministério Público, o indígena já registrado no Serviço de Registro Civil das Pessoas Naturais pode solicitar, pela via judicial, a retificação do assento de nascimento para inclusão do nome indígena de sua livre escolha.
O autor do voto que prevaleceu no julgamento, ministro Raul Araújo, explicou que a citada resolução admite a retificação do registro de pessoa natural de origem indígena, para inclusão das informações referentes ao nome e à respectiva etnia, "sem previsão, no entanto, de adoção das mesmas medidas para pessoa que, sem qualquer comprovação de origem autóctone brasileira, deseja tornar-se indígena, por razões meramente subjetivas e voluntárias, com substituição completa do nome registrado, inclusive exclusão dos apelidos de família".
O ministro ressaltou que o normativo tutela direito de pessoa comprovadamente indígena, sendo necessária a condição genética como pré-requisito para o alcance da norma. "Nada indica seja o caso da recorrente, como se verifica em seus registros de identidade, pois a promovente demonstra apenas seu forte e sincero desejo de passar a ser tida como indígena, sem comprovar origem e ascendência de povo pré-colombiano", concluiu.