Uma das grandes preocupações de qualquer sistema de segurança pública é sobre as condições para que as pessoas possam ter armas de fogo sob seu poder, seja na situação de posse (aquisição e guarda do armamento), seja na de porte (permissão para que o indivíduo carregue a arma consigo).
O Brasil tem legislação específica sobre registro, posse e comercialização de armas de fogo e munição: é a Lei 10.826/2003, o Estatuto do Desarmamento, que define as pessoas autorizadas a portar armas – a exemplo dos integrantes das Forças Armadas, dos membros de órgãos policiais e dos profissionais de empresas de segurança privada. A mesma lei considera crimes a posse e o porte de armas de fogo de uso permitido (aquelas acessíveis às pessoas em geral) em desacordo com determinação legal ou regulamentar, assim como a posse e o porte ilegais de arma de uso restrito.
Quando há a potencial configuração desses crimes, muitas das discussões levantadas no processo acabam chegando ao Superior Tribunal de Justiça (STJ).
Em agosto de 2023, ao julgar o agravo regimental no HC 759.689, a Sexta Turma reafirmou que é crime a conduta de possuir ou manter sob guarda arma de fogo, acessório ou munição, de uso permitido, em desacordo com determinação legal ou regulamentar.
O relator, ministro Antonio Saldanha Palheiro, ressaltou que esse é um crime de perigo abstrato, em que o bem jurídico protegido é a incolumidade pública, sendo irrelevante o fato de a arma de fogo estar desmuniciada ou ser parcialmente ineficaz para efetuar disparos.
A defesa havia pedido a aplicação do princípio da insignificância, alegando ausência de lesividade da conduta, por se tratar de uma arma antiga e desmuniciada, mas o relator explicou que a análise do pedido acarretaria indevida supressão de instância, já que o assunto não foi debatido no tribunal de origem.
No mesmo sentido, o STJ, no agravo regimental no HC 595.567, entendeu que a posse irregular de arma de fogo de uso permitido, ainda que desmuniciada, configura o crime do artigo 12 da Lei 10.826/2003.
O relator, ministro Rogerio Schietti Cruz, observou que, além de o laudo pericial ter demonstrado a eficácia da arma, esse é um delito de perigo abstrato que presume a ocorrência de risco à segurança pública e prescinde de resultado naturalístico contra a integridade de outrem para ficar caracterizado.
Em 2013, a Sexta Turma decidiu que constitui crime a conduta de possuir arma de fogo de uso permitido com numeração, marca ou qualquer outro sinal de identificação raspado, suprimido ou adulterado, praticada após 23/10/2005 – data final do prazo de validade da abolitio criminis temporária do Estatuto do Desarmamento.
Ao negar provimento ao recurso, o relator do REsp 1.311.408, ministro Sebastião Reis Junior, ressaltou que não se poderia admitir a extinção da punibilidade, disposta no artigo 32 da Lei 10.826/2003, apenas porque o possuidor poderia ter entregado espontaneamente o armamento, como a defesa alegou nos autos.
"Se a causa extintiva da punibilidade consiste em ato jurídico, tão somente se tiver havido a sua efetiva prática é que a excludente produzirá seus efeitos", completou.
O ministro enfatizou que a arma de fogo com sinais de adulteração também não poderia ser regularizada por meio do registro, nem seu possuidor beneficiado pela abolitio criminis contida no artigo 30 da mesma lei.
No agravo regimental no HC 804.912, a Quinta Turma reconheceu que, para a aplicação do princípio da insignificância no crime de posse de munição, é necessária a análise das circunstâncias do caso concreto, não se podendo levar em conta apenas critérios quantitativos.
O relator, ministro Ribeiro Dantas, lembrou que a jurisprudência do STJ considerava os crimes previstos nos artigos 12, 14 e 16 da Lei 10.826/2033 como sendo de perigo abstrato, o que dispensava a prova de lesividade concreta da conduta. No entanto, o Supremo Tribunal Federal (STF) admitiu a incidência do princípio da bagatela na posse de pequena quantidade de munição desacompanhada de armamento capaz de deflagrá-la.
No caso dos autos, Ribeiro Dantas destacou que o acusado era reincidente pela prática de crime similar e estava respondendo a outro processo pela mesma imputação. "Sua reiteração delitiva obsta a incidência do princípio da insignificância", completou.
Veículo usado profissionalmente não é considerado local de trabalho
Em 2012, a Sexta Turma aplicou o entendimento de que o veículo utilizado profissionalmente não pode ser considerado extensão do local de trabalho. Desse modo, o colegiado concluiu que a apreensão de arma não regularizada no interior de um caminhão configurou o crime de porte ilegal, e não de posse irregular.
O dono do caminhão trabalhava com frete e foi flagrado pela polícia com um revólver guardado na cabine do veículo. O tribunal de origem entendeu que ele deveria responder por posse irregular, crime caracterizado pela manutenção de arma em desacordo com determinação legal ou regulamentar, no interior da residência ou do local de trabalho. Para a corte local, o caminhão era o local de trabalho do réu.
No entanto, o relator do REsp 1.219.901, ministro Sebastião Reis Junior, afirmou que local de trabalho é um lugar determinado, não móvel. "O caminhão não é um ambiente estático, não podendo ser reconhecido como local de trabalho. A expressão 'local de trabalho' não pode abranger todo e qualquer espaço por onde o caminhão transitar, porque aí estaria adentrando no significado de porte de arma de fogo, em que o agente não está limitado a um único ambiente", disse o ministro.
A Sexta Turma entendeu que, conforme os artigos 14 e 16 do Estatuto do Desarmamento, se o registro cautelar estiver vencido, será caracterizado o crime de porte de arma de fogo de uso permitido ou de uso restrito.
Segundo os autos, um policial portava uma arma de uso restrito, com registro de cautela vencido, em contexto dissociado de sua atividade profissional.
O relator do agravo regimental no AREsp 885.281, ministro Antonio Saldanha Palheiro, recordou que, em 2015, a Corte Especial firmou entendimento no sentido de que, uma vez realizado o registro da arma, o vencimento da autorização não caracteriza ilícito penal, mas mera irregularidade administrativa que autoriza a apreensão do artefato e a aplicação de multa.
Todavia, o ministro esclareceu que tal entendimento é restrito à posse de arma de fogo de uso permitido e que o caso em julgamento na Sexta Turma dizia respeito ao porte de arma de uso restrito, de reprovabilidade mais intensa.
A Sexta Turma negou provimento ao recurso de um delegado de polícia denunciado por possuir arma de fogo e munições de uso permitido, sem o certificado expedido pela Polícia Federal. O armamento só foi descoberto após cumprimento de mandado de busca e apreensão em sua residência.
O relator do RHC 70.141, ministro Rogerio Schietti Cruz, destacou que a conduta do delegado foi típica e antijurídica, pois, mesmo autorizado a possuir e portar arma de fogo em razão do seu cargo, ele não observou as imposições legais previstas no Estatuto do Desarmamento, que exigem registro das armas no órgão competente.
Schietti enfatizou que não seria o caso de aplicar o princípio da adequação social, pois a conduta do policial não foi socialmente tolerável e adequada ao plano normativo penal. "O fato de ser policial não o habilita a portar ou possuir arma sem registro no órgão competente", concluiu.
No julgamento do REsp 1.451.397, a Sexta Turma reconheceu a atipicidade da conduta do agente que detinha a posse de arma de fogo e munições de uso proibido – sem autorização e em desacordo com a determinação legal –, já que, por laudo pericial, ficou demonstrada a total ineficácia do material apreendido.
A ministra relatora, Maria Thereza de Assis Moura, observou que, embora a Terceira Seção tenha pacificado o entendimento de que a posse ou o porte ilegal de arma de fogo é crime de mera conduta ou de perigo abstrato, essa tese não se aplicava ao caso em discussão.
A relatora apontou que o laudo técnico descartou, por completo, a potencialidade lesiva do armamento, assim como das munições, que estavam percutidas e deflagradas. Conforme lembrou, a Quinta Turma entendeu da mesma forma quando, em situação similar, concluiu que o objeto apreendido não se enquadraria no conceito técnico de arma de fogo.
No final de 2020, a Sexta Turma afastou a natureza hedionda do crime de porte ou posse de arma de uso permitido com numeração raspada.
A relatora do HC 525.249, ministra Laurita Vaz, explicou que a Lei 13.497/2017 – que alterou a Lei dos Crimes Hediondos – conferiu tratamento mais grave apenas ao crime de posse ou porte de arma de fogo, de acessório ou de munição de uso proibido ou restrito, não abrangendo os casos que são de uso permitido com numeração, marca ou qualquer outro sinal de identificação raspado, suprimido ou adulterado.
Para a ministra, diante da obscuridade do artigo 1º da Lei dos Crimes Hediondos, e por ser uma questão relevante na execução penal, "cabe ao julgador adotar uma postura redutora de danos, em consonância com o princípio da humanidade".
Em abril deste ano, a Terceira Seção aprovou a Súmula 668, consolidando tal entendimento: "Não é hediondo o delito de porte ou posse de arma de fogo de uso permitido, ainda que com numeração, marca ou qualquer outro sinal de identificação raspado, suprimido ou adulterado".