Negro não é apenas uma cor, a manifestação mais visível que ##mora## sobre a pele: é, sobretudo, um sentimento. Sentimento de luta permanente, com a memória de sofrimento e violência vividos ao longo dos séculos; sentimento de resistência, renovado a cada violação de direitos, das mais evidentes às mais sutis, dirigidas ao corpo e à alma; sentimento, também, de orgulho e esperança, com a certeza de que ainda há muito a conquistar.
Existência e resistência – essências do sentimento negro – voltam a ser fortalecidas a cada Dia da Consciência Negra, comemorado em 20 de novembro. Com a publicação da Lei 14.759/2023, pela primeira vez, a data foi celebrada em 2024 como feriado nacional, realçando a necessidade de que o movimento contra o preconceito racial ganhe força e expressão.
No STJ, várias decisões colocaram o tribunal como parte desse movimento de combate a todas as formas de discriminação. Para celebrar o Dia da Consciência Negra, esta reportagem especial destaca algumas dessas decisões.
Seria apenas mais um casal interessado em se associar a um clube para aproveitar dias de lazer, mas essa situação banal se tornou um processo no STJ após a notícia de que a diretoria teria impedido a aquisição das cotas sociais porque a mulher era negra.
De acordo com os autos, as tratativas corriam normalmente por telefone, até que a mulher foi pessoalmente concluir a negociação das cotas e, a partir de então, os representantes do clube passaram a recusar a admissão do casal e de seus familiares. Segundo o Ministério Público, um dos representantes chegou a afirmar que os vendedores das cotas foram orientados a não negociar com negros.
O presidente do clube foi denunciado com base na Lei 7.716/1989, que define os crimes resultantes de preconceito de raça, cor, etnia, religião ou nacionalidade. O dirigente alegou que o clube era uma entidade fechada, frequentada apenas pelos associados, e que a diretoria poderia aceitar ou recusar as propostas de ingresso sem indicar motivos. Ele também apresentou fotos e documentos que comprovariam "a presença de grande número de pessoas negras nos quadros de sócios".
O relator do RHC 12.809, ministro Hamilton Carvalhido (falecido), comentou que o artigo 9º da Lei 7.716/1989 considera crime, sujeito à pena de um a três anos, impedir o acesso ou recusar atendimento, por motivo de preconceito, em estabelecimentos esportivos, casas de diversões ou clubes sociais abertos ao público.
Para o ministro, além de os acontecimentos narrados na denúncia indicarem, em tese, o cometimento do delito, o próprio Ministério Público argumentou que, conforme informações colhidas na cidade, "o denunciado nunca tolerou a participação efetiva de negros nos quadros sociais, salvo raríssimas exceções". Como consequência, a Sexta Turma, seguindo o voto do relator, manteve a ação penal contra o dirigente do clube (RHC 12.809).
Durante o patrulhamento pelas ruas de Bauru (SP), o que desperta a atenção dos policiais, mais uma vez, é a cor da pele: ao avistarem uma pessoa negra, os agentes se aproximam na viatura e, após revista do agora suspeito, encontram cerca de 1,5 grama de cocaína. Denunciado e tornado réu, o homem é condenado a sete anos e 11 meses de prisão por tráfico de drogas.
O caso chegou ao STJ por meio de habeas corpus, e ao relator, ministro Sebastião Reis Junior, não escapou o fato de que a suspeita inicial dos policiais – a qual levou à revista pessoal – foi motivada pela pele negra. O ministro observou que, nos depoimentos dos agentes, nenhuma outra característica física do suspeito foi mencionada (como peso, cabelo, idade ou roupas), apenas a cor.
Conforme ressaltou Sebastião Reis Junior, só depois da abordagem os policiais identificaram o indivíduo como alguém que estaria envolvido com o tráfico de drogas na região.
"Não vejo como não compreender que a busca só se deu em razão da cor do paciente. O senso comum me permite chegar a esta conclusão, até porque, se essa cena ocorresse nos Jardins [bairro nobre de São Paulo], os policiais, certamente, não teriam se aproximado e abordado o paciente", comparou o ministro (HC 660.930).
Quando a injúria surge no meio das investigações de outro crime
No curso de investigações sobre um homicídio, a Justiça autorizou a interceptação telefônica de um dos suspeitos. As conversas foram degravadas pela polícia, e o que era um crime se tornou dois: nos diálogos, o investigado se referia ao delegado responsável pelo caso em termos como "preto safado", "macaco", "fedido", entre outras expressões racistas e ofensivas.
Alvo dos comentários injuriosos, o delegado ajuizou queixa-crime contra o investigado, além de ingressar com ação de indenização por danos morais. A queixa-crime foi extinta após o reconhecimento da prescrição, mas o processo indenizatório foi julgado procedente para condenar o réu ao pagamento de R$ 50 mil em favor do delegado.
Em recurso especial, o réu alegou que as supostas injúrias não tinham qualquer relação com o crime de homicídio que era investigado à época. Para a defesa, as provas decorrentes da degravação das conversas seriam nulas e não poderiam ter embasado a ação de indenização.
O relator do recurso, ministro Marco Aurélio Bellizze, comentou que a interceptação telefônica vale não apenas para o crime ou para os indiciados que motivaram o pedido, mas também para outros delitos ou pessoas que, até aquele momento, não estavam identificados.
Trata-se do fenômeno da serendipidade – explicou o ministro. "Durante a interceptação das conversas telefônicas, pode a autoridade policial descobrir novos fatos, diversos daqueles que ensejaram o pedido de quebra do sigilo, sendo válidas as provas encontradas fortuitamente pelos agentes de persecução penal, revelando-se, também, perfeitamente possível a instauração de nova investigação para apurar o crime até então desconhecido, independentemente da sua relação com a infração penal que se estava investigando", completou.
Ainda de acordo com Bellizze, é cabível a utilização de prova emprestada, obtida em ação penal correlata, para fundamentar o processo cível de indenização – ainda que a ação penal tenha sido extinta devido à prescrição (o número deste processo não é divulgado em razão de segredo judicial).
Em 2014 e 2015, a Confederação Brasileira de Futebol (CBF) promoveu a campanha "Somos todos iguais" para combater atos racistas nos jogos. Dois anos depois, em 2017, uma pessoa postou, em grupo de WhatsApp, uma imagem na qual fazia comparação de cunho discriminatório entre torcedoras negras do Esporte Clube Bahia e torcedoras brancas do Grêmio, trazendo, em referência à campanha da CBF, os dizeres "ainda tem gente que acha que todo time é igual".
Buscando trancar a ação penal, o suposto autor da publicação alegou que não haveria qualquer cunho racista na foto nem no comentário que a acompanhava. Ele ainda argumentou que toda pessoa tem direito à liberdade de expressão e de opinião e que, portanto, não poderia ser processado por ter postado a montagem.
Relator do recurso em habeas corpus, o ministro Messod Azulay Neto apontou que, na denúncia, o Ministério Público descreveu quando e de que forma os atos de preconceito racial teriam sido cometidos. Ainda segundo a denúncia – prosseguiu o relator –, a postagem circulou em diversos grupos de mensagens, com a disseminação de uma ideia de inferioridade das torcedoras negras do Bahia em relação às torcedoras brancas do time gaúcho.
"A exordial delineou todo o suposto modus operandi que teria sido utilizado, assim como descreveu o dolo em tese empregado na respectiva prática delitiva narrada nos autos, de modo que não há falar em inépcia da denúncia ou mesmo, prima facie, em ofensa ao direito constitucional de liberdade de expressão", concluiu o ministro (RHC 140.108).
Barradas em clubes, interpeladas pela polícia sob o ar da discriminação, ofendidas em conversas telefônicas, atingidas por comentários depreciativos quando estão apenas torcendo pelo seu time: o ponto em comum dessas histórias é que as vítimas são todas negras.
O baralho de situações de preconceito rotineiramente analisadas pelo STJ inclui uma outra carta, posicionada novamente entre as implicações penais da questão racial: o reconhecimento de suspeitos.
No HC 712.781, julgado pela Sexta Turma, o ministro Rogerio Schietti Cruz comentou a influência do racismo estrutural no procedimento de reconhecimento de pessoas. Na decisão, ele mencionou estudo desenvolvido pelo Conselho Nacional das Defensoras e dos Defensores Públicos-Gerais (Condege) e pela Defensoria Pública do Rio de Janeiro segundo o qual, entre 90 prisões injustas decorrentes de erros de reconhecimento, 81% recaíam sobre negros.
Um dos casos emblemáticos em que a questão racial foi tratada pelo STJ foi o HC 769.783, no qual a Terceira Seção determinou a soltura de um porteiro acusado em 62 processos criminais.
Negro, o porteiro teve fotos suas retiradas de redes sociais e incluídas no mural de suspeitos de uma delegacia do Rio de Janeiro. A partir desse momento, com base nessas imagens, as vítimas passaram a apontá-lo como autor de crimes de roubo – sem que houvesse, na fase policial ou em juízo, a realização de diligências ou a juntada de outras provas que confirmassem a suspeita.
Como consequência dessas constatações, os ministros absolveram o réu em um dos processos, revogaram a sua prisão preventiva e determinaram a reanálise de todos os demais casos pelas instâncias ordinárias.
"Não há como contestar a realidade do racismo. Basta a leitura dos processos, basta fazer uma análise do que chega às nossas mãos, para percebermos que o preto pobre é o principal alvo da atuação policial", afirmou o ministro Sebastião Reis Junior no julgamento, que teve como relatora a ministra Laurita Vaz (aposentada).