De um lado, reflexões sobre os potenciais benefícios do uso da cannabis medicinal – não só à saúde, mas à indústria e ao sistema econômico; de outro, argumentos sobre possíveis perigos da autorização indiscriminada para importação de sementes e plantio. Essas posições marcaram o encerramento da audiência pública realizada nesta quinta-feira (25), no Superior Tribunal de Justiça (STJ).
O tema é objeto do Incidente de Assunção de Competência 16 (IAC 16), que tramita na Primeira Seção e tem como relatora a ministra Regina Helena Costa.
Abrindo o terceiro painel de discussão, o advogado Emílio Figueiredo falou em nome da Rede Jurídica pela Reforma da Política de Drogas (Rede Reforma). Em sua apresentação, ele fez um apanhado histórico sobre a regulação da cannabis e estabeleceu diferenças entre o uso terapêutico e o uso industrial da planta. "O ##IAC## 16 está afetando principalmente associações de pacientes que submeteram à jurisdição o direito de cultivar a cannabis e estão com suas ações suspensas", lembrou.
Em seguida, falaram em nome do Laboratório de Produtos Naturais e Fitoterápicos da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) o pró-reitor de inovação da instituição, Geraldo Pereira Jotz, e o secretário de desenvolvimento tecnológico, Flávio Anastácio de Oliveira Camargo. Eles demonstraram preocupação com as possíveis formas de controle do cultivo familiar da cannabis.
"O canabidiol, falando como médico, é excelente, mas onde está o controle quando se autoriza o cultivo familiar? Temos que enxergar a medicina daqui a dez ou 20 anos. A repercussão do THC no cérebro de uma criança é irreparável. O Estado precisa ter esse controle", afirmou o pró-reitor de inovação da UFRGS.
A advogada Bruna Barbosa Rocha abordou aspectos econômicos ao representar a Associação Brasileira da Indústria de Canabinoides (BRCann). Ela citou um estudo conjunto da Confederação Nacional da Indústria (CNI), da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp) e da Federação das Indústrias do Estado do Rio de Janeiro (Firjan) apontando a fuga de cerca de R$ 453 bilhões devido à existência de um mercado não regulado de cannabis no Brasil.
"Há a necessidade de se estabelecer uma base jurídica a partir das autoridades competentes. Viabilizar que o Poder Judiciário alimente ações sem amparo legal é facilitar que dados como esse cresçam", refletiu a advogada.
A fundadora do Instituto InformaCann, Manuela Borges, destacou os possíveis usos do cânhamo industrial – uma subespécie da planta Cannabis sativa que não contém psicoatividade. "Ela é uma solução ecologicamente correta que pode substituir uma série de produtos derivados do petróleo. Seu cultivo tem sido usado como moeda no mercado de crédito de carbono e representa produção de emprego e renda, que estão saindo do Brasil", observou.
Ainda sobre as possibilidades do uso do cânhamo, o advogado André Tadeu de Magalhães Andrade expôs a posição da Associação Brasileira de Cannabis e Cânhamo Industrial. Ele lembrou que a Convenção Única sobre Entorpecentes da Organização das Nações Unidas (ONU) excluiu, em seu artigo 28, a possibilidade de repressão ao uso da cannabis para fins exclusivamente industriais.
No âmbito nacional, segundo o advogado, a Lei 11.343/2006 (Lei de Drogas) "está preocupada com a produção não autorizada e com o tráfico ilícito de drogas, o que em muito difere da atuação daqueles trabalhadores e empreendedores que pretendem lidar com uma commodity agrícola materialmente incapaz de originar drogas", ressaltou.
Representando o Conselho Federal de Química, Luiz Miguel Skrobot Júnior lembrou que é possível o controle do cânhamo industrial por meio de rastreabilidade. "Há projetos em andamento nesse sentido que utilizam biomarcadores em sementes. O controle já existe também com o petróleo e a gasolina", exemplificou.
Primeira a falar no painel 4, a professora da Universidade de Brasília (UnB) Andrea Donatti Gallassi, representante da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), destacou as evidências científicas do potencial terapêutico da cannabis na saúde pública.
"Para doenças como epilepsia, dor crônica/neuropática, fibromialgia e esclerose múltipla, muitos estudos colocam o uso do canabidiol, com baixo teor de THC, como uma grande indicação terapêutica. Para avançarmos mais nesses estudos com relação a outras doenças, precisamos de uma produção nacional de produtos à base de cannabis, pois conseguiríamos ter um ambiente de estudo controlado", disse.
Já os representantes da Associação Brasileira das Indústrias de Cannabis (Abicann), Ana Fábia Martins e Rafael Medeiros Popini Vaz, ressaltaram que mais de 20 milhões de pessoas no Brasil já poderiam estar fazendo uso de produtos à base de cannabis para tratar cerca de 500 tipos de patologias diferentes. "Estamos sendo obrigados a judicializar o que devia ser legislado e regulamentado. Mas, felizmente, temos essas decisões para proteger o direito à saúde e ao bem-estar", declarou Ana Fábia Martins.
Para Fabian Borghetti, doutor em biologia molecular e representante do Conselho Federal de Biologia (CFBio), a Cannabis sativa apresenta um repertório químico e farmacológico extremamente rico, o que possibilita seu uso para inúmeros tratamentos. "A Anvisa, a Fiocruz e a ONU reconhecem a potencialidade da cannabis. O seu plantio traz outros benefícios, como a retirada de metais pesados do solo, a regeneração de solos degradados, alta incorporação de gás carbônico – que contribui no combate às mudanças climáticas – e, além disso, o cultivo geraria aumento de emprego e renda", disse.
O diretor de relações institucionais da Associação Nacional do Cânhamo Industrial, Marcelo Alexandre Andrade de Almeida, ressaltou que o Brasil tem um enorme potencial para a exploração do cânhamo industrial. Segundo ele, o cânhamo é uma cultura muito versátil e multiúso, utilizável em ampla gama de produtos baseados na biodiversidade, o que desperta o interesse em diversos mercados.
"Tecidos, equipamentos para a construção civil, manejo sustentável do setor agrícola e uma série de outras circunstâncias que nada têm a ver com a ilicitude carreada pelos narcotraficantes. Estados Unidos, Canadá, Inglaterra, Portugal e Argentina são alguns dos países que comercializam cânhamo industrial normalmente. Precisamos incorporar isso aos nossos ordenamentos para que o desenvolvimento da atividade econômica com base no cânhamo industrial tenha segurança e solidez jurídica", declarou.
Para finalizar o painel, falaram as professoras da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) Claudia Fegadolli e Luciana Surjus. A primeira ressaltou que a população brasileira tem acesso a cerca de 33 produtos com extratos de Cannabis sativa e canabidiol. "No entanto, as empresas brasileiras só podem produzir com a importação dos insumos, o que se traduz em preços bastante elevados. Entre 2015 e 2023, por exemplo, cerca de R$ 165,8 milhões foram gastos pela União para fornecer os medicamentos", explicitou.
Já Luciana Surjus ponderou que a restrição ao plantio de Cannabis sativa tem impedido a ampliação do tratamento a pessoas de baixa renda. "Devemos regulamentar o cultivo no nosso país, lembrando de garantir mecanismos de continuidade do tratamento para quem já conquistou essa proteção jurídica e comportando também aqueles que buscam o acesso lícito para as suas atividades, que são essenciais para um acesso equânime e sustentável no Brasil", apontou.
No último painel da audiência, conduzido pelo ministro Sérgio Kukina, a representante da Federação das Associações de Cannabis Terapêutica do Brasil, Maria Ângela Aboin Gomes, afirmou que a chamada "guerra às drogas", em seu modelo atual, impede as pessoas de terem acesso a tratamentos com base em cannabis, além de dificultar pesquisas científicas sobre o assunto.
Maria Ângela Gomes também manifestou preocupação em relação à polinização cruzada entre plantas fêmeas – voltadas para o cultivo de cannabis – e machos – relacionadas ao cultivo de cânhamo –, situação que, segundo ela, pode inclusive prejudicar o cultivo doméstico e trazer riscos a pessoas já em tratamento.
Na visão do deputado federal e médico Osmar Terra, existe, no momento atual, uma espécie de "glamourização proposital" da maconha, uma tentativa de legalização da droga no Brasil.
Citando possíveis perigos relacionados à autorização do plantio, Osmar Terra relacionou a maconha a esquizofrenia, psicose, suicídios, retardo mental e mortes no trânsito. "Legalizando o plantio da maconha, o que se legaliza, na prática, é a maconha", sustentou.
Representante do Conselho Federal de Medicina (CFM), Emmanuel Fortes Silveira Cavalcanti destacou que já há autorização da entidade para o uso da cannabis em doenças específicas, como a epilepsia, mas demonstrou preocupação com o crescimento exponencial de prescrições médicas com produtos derivados da planta.
Para Cavalcanti, essas preocupações se estendem ao cultivo doméstico da maconha medicinal. "Existem perspectivas alvissareiras, mas elas não podem permitir que haja um plantio expansivo porque, para o CFM, somente as síndromes convulsivas têm ##prescrição## oficial. As demais prescrições precisam passar pelo crivo da avaliação científica. Fazer um plantio extensivo, com um universo tão pequeno de pessoas que oficialmente podem se beneficiar, não é adequado", ponderou.
No encerramento dos trabalhos, o subprocurador-geral da República Aurélio Virgílio Veiga Rios destacou as questões mais relevantes tratadas na audiência – como a atualização normativa do tema, os impactos socioeconômicos e os possíveis benefícios e malefícios do cultivo – e apontou a possibilidade de algum tipo de solução consensual sobre o assunto. "É possível fazer conciliações de interesses, desde que sejam vencidos preconceitos", afirmou.
A ministra Regina Helena Costa ressaltou a importância dos debates realizados durante o dia e a sua contribuição para a análise da controvérsia. "Existe uma demanda social por uma resposta", disse a relatora.