Uma carreira marcada por grandes conquistas: primeiro ministro a completar mais de 25 anos de atuação no Superior Tribunal de Justiça (STJ), Felix Fischer dedicou sua vida à atividade jurisdicional, sempre trabalhando para fortalecer as instituições, a função social da Justiça e a efetividade do Tribunal da Cidadania como corte de precedentes. Nesta segunda-feira (22), às vésperas de completar 75 anos, o ministro se aposenta, após meio século de militância no meio jurídico.
Natural de Hamburgo, na Alemanha, onde nasceu em 30 de agosto de 1947, Fischer tem a particularidade de ser o único membro das cortes superiores nascido em outro país. Com um ano de idade, veio com seus pais para o Brasil, onde se naturalizou.
Reconhecido como referência doutrinária, o magistrado é visto pelos colegas como um intelectual em vários campos, tendo expandido seu conhecimento para muito além do direito.
Foi nomeado para o Tribunal da Cidadania pelo presidente Fernando Henrique Cardoso, em dezembro de 1996, em vaga do Ministério Público – alcançando assim o cargo máximo da magistratura acessível a um brasileiro naturalizado.
No tribunal, sempre recebeu a admiração de colegas ministros, advogados e procuradores, sobretudo pela sólida formação jurídica, especialmente nas áreas de direito penal e processo penal. Exerceu o cargo de presidente do STJ, no biênio 2012-2014, e integrou a Corte Especial, a Terceira Seção e a Quinta Turma – os dois últimos colegiados especializados em matéria criminal.
Felix Fischer se formou em economia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, em 1971, e em direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, em 1972. Na sua trajetória profissional, exerceu diversas funções no Ministério Público do Paraná, atuando por 22 anos como promotor e procurador de Justiça.
Nesse mesmo período, trabalhou como professor em instituições de ensino superior, lecionando em Londrina (Universidade Estadual de Londrina) e Curitiba (Pontifícia Universidade Católica e Faculdade de Direito de Curitiba). Foi professor também na Escola da Magistratura do Paraná e na Escola do Ministério Público do Paraná.
Por seis vezes foi nome de turma, uma na PUC e cinco na Faculdade de Direito de Curitiba. Também participou, como examinador, de concursos do Ministério Público do Paraná, da Procuradoria-Geral do Estado do Paraná e da Universidade Federal do Paraná.
A partir de 1996, como ministro do STJ, trouxe expressiva contribuição para a jurisprudência brasileira, principalmente na área penal.
Concomitantemente, foi ministro e corregedor do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), diretor-geral da Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados (Enfam), diretor da Revista do STJ e presidente da Comissão de Jurisprudência.
Autor de várias publicações, Fischer recebeu inúmeras comendas e homenagens ao longo da carreira. É membro da Academia Paranaense de Letras Jurídicas e Cidadão Honorário do Paraná.
Conhecido pela linguagem sóbria e pertinente, Felix Fischer é tido como um julgador tecnicamente rigoroso, mas preocupado com as implicações sociais da atividade jurisdicional. Para ele, não é possível aplicar o direito sem atentar para o lado humano do caso posto à apreciação da Justiça.
Cauteloso e preocupado com a segurança jurídica, sempre valorizou a jurisprudência da corte, mas sem hesitar em inovar quando necessário. Nas sessões de julgamento, suas intervenções se caracterizavam pela precisão técnica e pela exposição clara de suas convicções.
Nessas mais de duas décadas e meia de atividade judicante, Felix Fischer superou a marca de 253 mil julgamentos, incluídas as decisões monocráticas e os votos proferidos nos processos que relatou em sessão. Além de ser o ministro mais longevo do tribunal, Fischer foi o que mais processos julgou, até o momento, entre todos os que compõem a Terceira Seção da corte.
"Tribunal de envergadura nacional, é aqui no Superior Tribunal de Justiça onde se congregam, de maneira harmoniosa, as carreiras da Justiça comum, do Ministério Público e da advocacia, na básica, mas nem sempre fácil, tarefa de uniformizar a interpretação da legislação federal infraconstitucional. Cada membro integrante oferece características singulares, a par da preparação técnica, que vão formar o conjunto de matizes que dá feição democrática e pluralista ao Tribunal da Cidadania", ressaltou Fischer em seu discurso de posse na presidência do STJ.
Durante sua gestão como presidente, de 2012 a 2014 – quando também exerceu a presidência do Conselho da Justiça Federal (CJF) –, o ministro teve a informatização como um de seus principais objetivos, adotando medidas importantes para a consolidação do avanço representado pela digitalização processual – entre elas, a obrigatoriedade do peticionamento eletrônico e a implantação do Modelo Nacional de Interoperabilidade (MNI), que estabeleceu padrões para o intercâmbio de informações de processos judiciais e similares entre os administradores da Justiça.
Nesse período, o STJ firmou acordo de integração eletrônica de processos, comunicações e documentos com a Procuradoria-Geral da República, e consolidou o envio e o recebimento de processos digitalizados com o Tribunal Regional Federal da 5ª Região, por meio do sistema Gestão de Peças Eletrônicas.
Fischer também desempenhou papel fundamental para a aprovação da PEC da Relevância – recentemente promulgada pelo Congresso Nacional. Como presidente do STJ, ajudou a elaborar e acompanhou a longa tramitação da emenda constitucional que alterou a redação do artigo 105 da Constituição Federal para criar um filtro para admissão dos recursos especiais.
Segundo o magistrado, a nova regra – ao condicionar a admissão do recurso à demonstração da relevância da questão jurídica em debate – vai otimizar os trabalhos do STJ e permitir que ele cumpra seu objetivo constitucional, que é uniformizar a interpretação da legislação federal.
Entre os muitos julgamentos marcantes de sua longa carreira, o ministro Fischer relatou casos de grande repercussão jurídica ou social, como os recursos da Operação Lava Jato. Antes disso, em 2009, foi o relator dos processos decorrentes da Operação Têmis, que investigou organização criminosa com atuação no Poder Judiciário, dedicada a negociar a venda de sentenças para fraudar a Receita Federal e permitir o funcionamento de bingos.
O magistrado defendeu o desmembramento da ação penal que tramitou no STJ, já que a denúncia envolveu 16 pessoas, mas somente três tinham foro por prerrogativa de função no tribunal. Em junho de 2009, com o voto do relator acompanhado por todos os seus pares, a Corte Especial desmembrou o processo, mantendo no tribunal apenas os fatos relativos aos desembargadores federais denunciados.
Meses depois, em decisão unânime, a corte rejeitou a denúncia contra os desembargadores. Segundo o relator, todas as denúncias foram rejeitadas no STJ e no Supremo Tribunal Federal (STF) porque se apoiavam em "motivos escassos ou insuficientes" (APn 549).
Em 1999, Felix Fischer relatou um caso que teve ampla cobertura da imprensa nacional: o recurso do Ministério Público contra a desclassificação, de homicídio doloso para lesão corporal seguida de morte, do crime imputado aos réus acusados de atear fogo no índio pataxó Galdino Jesus dos Santos, em Brasília, no ano de 1997.
A desclassificação da conduta impedia que o caso fosse levado ao tribunal do júri. Ao dar provimento ao recurso do MP, o ministro lembrou que, nessa fase processual, reconhecida a materialidade do delito, qualquer questionamento ou ambiguidade se submete à regra segundo a qual deve prevalecer o interesse da sociedade na apuração do crime.
"Detectada a dificuldade, em face do material cognitivo, na realização da distinção entre dolo eventual e preterdolo, a acusação tem que ser considerada admissível", afirmou Fischer, ao destacar que a desclassificação só pode ocorrer quando a acusação de crime doloso se mostrar manifestamente inadmissível.
A decisão do STJ, pronunciando os réus nos termos da denúncia, possibilitou que o caso fosse ao tribunal do júri, fato que ocorreu em 2001 (REsp 192.049).
Em dezembro de 2003, Fischer estabeleceu um precedente importante no STJ ao votar pela aplicação da tabela de prescrição criminal às medidas socioeducativas previstas no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).
Ao conceder habeas corpus para uma menor, em processo que tramitou em segredo de Justiça, o ministro considerou que as medidas socioeducativas previstas no ECA têm certa conotação repressiva, ainda que formalmente sejam preventivas.
"Não aplicar o instituto da prescrição aos atos infracionais, injustos fundamentadores da atuação do Estado, significa criar situações bem mais severas e duradouras aos adolescentes do que em idênticas situações seriam impostas aos imputáveis, o que é de todo desaconselhável e inaceitável", afirmou.
Relator do processo em julgamento, Felix Fischer acrescentou que as medidas socioeducativas perdem a razão de ser com o decurso do tempo. Dessa forma, segundo ele, em se tratando de menores de idade, com mais razão ainda deve ser aplicado o instituto da prescrição.
Em dezembro de 2015, depois que seu voto divergente prevaleceu no julgamento do HC 338.345, Fischer se tornou o relator dos recursos da Operação Lava Jato na Quinta Turma. Na decisão de manter preso preventivamente um dos executivos da construtora Odebrecht, o magistrado destacou o modo sistemático, habitual e profissional dos crimes praticados contra a administração pública, gerando grande prejuízo ao erário.
"Não se pode olvidar o fundado receio de reiteração delitiva, tendo em vista que o paciente seria integrante de organização criminosa voltada para o cometimento de ilícitos de corrupção e lavagem de ativos em contratações realizadas com o poder público, o que justifica a imposição da medida extrema no intuito de interromper ou de diminuir a atuação das práticas cartelizadas realizadas em prejuízo de grandes licitações no país", fundamentou.
Ele apontou que, apesar de encerrada a instrução processual, existiam indícios de que o executivo tinha sido orientado a destruir provas e vazar informações sigilosas, circunstância que poderia interferir em futura e eventual colheita de provas para a identificação de outros fatos.
Em 2016, a Quinta Turma decidiu que o descumprimento de acordo de delação premiada pode ser motivo para o restabelecimento da prisão preventiva (RHC 76.026). No caso analisado, sucessivas modificações nos depoimentos de um empresário condenado no âmbito da Lava Jato comprometeram a credibilidade de sua delação.
"Nos casos em que a intensidade do descumprimento do acordo de colaboração mostrar-se relevante, a frustração da expectativa gerada com o comportamento tíbio do colaborador permite o revigoramento da segregação cautelar", afirmou Fischer, relator do recurso.
Em outro processo sobre o tema – também relatado pelo ministro –, a Quinta Turma entendeu não ser possível expandir os benefícios da delação premiada.
Isso porque o ato é unilateral do acusado, para além das fronteiras objetiva e subjetiva da ação penal, em virtude de sua natureza endoprocessual, sob pena de violação ou afronta ao princípio do juiz natural. A decisão foi tomada em 2019, no julgamento do AgRg no REsp 1.765.139.