A relação da cidadania com o direito penal e o sistema de segurança pública pode ser vista sob diversos aspectos, mas um deles é especialmente reconhecido como fonte de tensões sociais: a atuação policial e o respeito aos direitos do cidadão.
No Brasil, são constantes os relatos de desrespeito aos direitos fundamentais em investigações e operações de combate ao crime, especialmente em locais pobres e contra aqueles que sofrem discriminação histórica, como a população negra.
Uma pesquisa da Defensoria Pública do Rio de Janeiro, realizada em parceria com o Colégio Nacional de Defensores Públicos-Gerais (Condege), identificou que foram feitas ao menos 90 prisões injustas a partir de reconhecimento fotográfico entre 2012 e 2020. Em 81% dos casos, os apontados eram pretos ou pardos.
Quanto às localidades, um levantamento publicado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), em novembro de 2023, revelou que residências de bairros ricos e com população de maioria branca são quase imunes à entrada da polícia em busca de drogas. Nas cidades analisadas, 84,7% dos ingressos em domicílios ocorreram em bairros ocupados predominantemente por negros, e 91,2% se deram em áreas com renda domiciliar mensal per capita de até um salário mínimo.
O Superior Tribunal de Justiça (STJ) tem examinado diversas situações de conflito entre os direitos fundamentais e a atuação dos órgãos de persecução penal. Nesta sexta reportagem da série especial Faces da Cidadania, são apresentados precedentes em que o tribunal garantiu a preservação de direitos do cidadão diante do sistema policial e da Justiça penal.
Presidente da Terceira Seção do STJ, colegiado especializado em matéria penal, o ministro Ribeiro Dantas liderou a comissão de juristas responsável por apresentar à Câmara dos Deputados uma proposta de atualização da Lei de Drogas, em 2019, e é relator de julgados relevantes na área criminal. Para o magistrado, segurança pública e cidadania são conceitos indissociáveis.
"Como alguém pode ser cidadão em plenitude se não tem segurança para ir e vir? Para trabalhar, para estudar, para passear, mesmo para ficar em casa? Uma sociedade insegura, além disso, é mais vulnerável – enquanto grupo social – na sua tranquilidade para tomar decisões mais serenas e coerentes. O medo gera mais violência, em um círculo vicioso", refletiu o ministro.
A percepção de Ribeiro Dantas se ampara no artigo 144 da Constituição Federal, que define segurança pública como a ação exercida para preservar a ordem e a incolumidade das pessoas e do patrimônio. Partindo desse dispositivo, a delegada da Polícia Civil de Santa Catarina Ana Silvia Serrano, autora do artigo A relação entre cidadania e segurança pública: implicações para a doutrina de polícia, lembra que a Constituição vincula cidadania e segurança em outros momentos: além do artigo 144, o tema da segurança é tratado como um direito de natureza individual (artigo 5º) e, ao mesmo tempo, coletivo ou social (artigo 6º).
"Em sua acepção mais ampla, cidadania inclui o reconhecimento de direitos civis, políticos e sociais e a possibilidade de exercê-los. Assim, a segurança pública foi estabelecida como direito dos cidadãos, e também como responsabilidade de todos: pessoas e Estado. Sua importância se confunde com a própria razão de existir do Estado", destacou a delegada.
No entanto, a Constituição Federal de 1988 – não à toa conhecida como Constituição Cidadã – vai além de comandos gerais ao prever direitos e garantias inovadores na proteção da cidadania. Entre outros exemplos, estão o compromisso com tratados e convenções internacionais de direitos humanos – por meio da
Emenda Constitucional 45/2004 –, a proteção do silêncio do réu, a inviolabilidade do domicílio, o fortalecimento das defensorias públicas e uma série de regras que buscam afastar as violações de direitos da atividade repressora estatal.
Defensor público do Rio de Janeiro, Pedro Carriello afirma que os instrumentos previstos na Constituição Federal existem para proteger os cidadãos indiscriminadamente, mas deveriam amparar, sobretudo, aqueles mais carentes, os quais ele denomina como "destinatários da vigilância pública".
"O processo penal brasileiro tem cor. Todas as pesquisas trazem esse grau de seletividade. Há essa ideia no perfilamento racial, na abordagem, na pessoa que é vítima de um reconhecimento fotográfico. Tudo sempre deságua nas pessoas negras, pobres e periféricas. São elas que sofrem a mão forte do Estado", salientou.
Segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, de 2012 a 2022, quase 50 mil pessoas morreram em ações policiais, sendo que cerca de 80% das vítimas eram negras.
Outro levantamento, realizado pela Oxfam Brasil em parceria com o Datafolha, em 2019, comprova o ponto de vista de Pedro Carriello: 81% da população brasileira acham que a cor da pele influencia em uma abordagem policial. Já para 71% dos entrevistados, a Justiça é mais dura com pessoas negras e pardas.
Essa realidade foi evidenciada no julgamento de um habeas corpus pela Sexta Turma do STJ em 2021 (HC 660.930), caso no qual um homem suspeito de tráfico foi preso em razão da cor. Para o relator, ministro Sebastião Reis Junior, ainda que houvesse outros elementos a indicar o crime, os policiais deixaram claro que a cor da pele foi o primeiro fator considerado no flagrante.
Outro julgamento de grande repercussão, em que se discutiu o procedimento para reconhecimento de pessoas suspeitas de crimes, também deixou evidente a questão do racismo na persecução penal.
Em 2023,
a Terceira Seção determinou a soltura imediata de um porteiro – homem negro e morador da periferia – que foi condenado com base apenas no reconhecimento fotográfico. A situação se repetia em outros 61 processos criminais, em que ele era investigado ou foi condenado a partir de uma foto apontada pelas vítimas.
Ao relatar o HC 769.783, a ministra Laurita Vaz (aposentada) classificou o caso como um "erro judiciário gravíssimo". Na ocasião, o ministro Sebastião Reis Junior definiu a situação como uma "ilegalidade gritante" no sistema de persecução penal. "O preto pobre é o principal alvo da atuação policial", destacou o magistrado ao lembrar que, nas abordagens policiais, pessoas da periferia e moradores das regiões mais ricas são, frequentemente, tratados de forma desigual.
Para resguardar a cidadania de pessoas submetidas ao procedimento de reconhecimento pessoal ou fotográfico, a Sexta Turma já havia definido que
a inobservância do artigo 226 do Código de Processo Penal (CPP) invalida o reconhecimento do acusado feito na polícia, não podendo servir de base para a sua condenação, nem mesmo se for confirmado na fase judicial.
Relator do HC 598.886, o ministro Rogerio Schietti Cruz afirmou que as formalidades legais para o reconhecimento são garantias mínimas para o suspeito da prática de um crime.
O referido artigo do CPP diz que a pessoa alvo do reconhecimento deve ser colocada, se possível, ao lado de outras que com ela tiverem qualquer semelhança. Segundo Schietti, entretanto, tratar o dispositivo apenas como uma "recomendação do legislador" acabaria por "permitir a perpetuação desse foco de erros judiciários e, consequentemente, de graves injustiças".
Em relação à abordagem policial e ao ingresso em domicílio, muitos dos casos que chegam ao STJ refletem o histórico de violações de direitos das pessoas pobres e negras.
Para a delegada Ana Silvia Serrano, uma forma de afastar a imagem negativa criada em torno das polícias é investir em uma formação humanizada, que permita ao agente reconhecer os direitos da população em geral e também se enxergar como cidadão.
"É essencial que ele se identifique como operador da lei, promotor da cidadania, que vai trabalhar com inteligência e metodologia científica na investigação. Com isso, antigas práticas autoritárias que visavam despersonalizar os policiais para enquadrá-los em modelos repressivos de combate ao crime vão, aos poucos, saindo da cultura das academias", apontou a delegada.
Em outra frente de reflexão, o ministro Rogerio Schietti sugeriu, ao relatar o
HC 598.051, que policiais usem câmeras corporais para resguardar a lisura das abordagens. Para ele, o uso dos equipamentos protegeria os direitos da população em geral e do próprio agente, pois o registro de sua atuação em vídeo o imunizaria contra injustas acusações à sua conduta funcional.
No habeas corpus em questão, a Sexta Turma estabeleceu, entre outras teses, que o consentimento do morador, para validar o ingresso de agentes estatais em sua casa e a busca e apreensão de objetos relacionados ao crime, precisa ser voluntário e livre de qualquer tipo de constrangimento ou coação.
Ainda segundo o colegiado, a prova da legalidade e da voluntariedade do consentimento para a entrada na residência do suspeito incumbe, em caso de dúvida, ao Estado, e deve ser feita com declaração assinada pela pessoa que autorizou o ingresso domiciliar, indicando-se, sempre que possível, testemunhas do ato.
"A violação a essas regras e condições legais e constitucionais para o ingresso no domicílio alheio resulta na ilicitude das provas obtidas em decorrência da medida, bem como das demais provas que dela decorrerem em relação de causalidade, sem prejuízo de eventual responsabilização penal dos agentes públicos que tenham realizado a diligência", ressaltou Schietti.
Na mesma linha decidiu a Quinta Turma ao julgar o
HC 616.584. Para o relator, ministro Ribeiro Dantas, "na falta de comprovação de que o consentimento do morador foi voluntário e livre de qualquer coação e intimidação, impõe-se o reconhecimento da ilegalidade na busca domiciliar e, consequentemente, de toda a prova dela decorrente".
Em outro acórdão relatado por Rogerio Schietti (HC 674.139), a Sexta Turma absolveu um homem acusado de tráfico de drogas, por considerar que a violação do domicílio sem mandado judicial, mesmo em caso de flagrante (como ocorre no armazenamento de drogas, que é crime permanente), não pode ser legitimada pela simples constatação da situação de flagrância posterior ao ingresso não autorizado.
De acordo com o ministro, o policial não pode ter total discricionariedade para entrar na casa de alguém à força, com base apenas em sua intuição. "É necessário que tenha a autoridade policial fundadas razões para acreditar, com lastro em circunstâncias objetivas, no atual ou iminente cometimento de crime no local onde a diligência vai ser cumprida", afirmou.
No
HC 686.489, julgado em 2021, a Quinta Turma anulou as provas e absolveu um réu que havia sido condenado por tráfico após a polícia invadir sua casa sem mandado judicial. Ele estava na rua e, ao ver a viatura, correu para o imóvel. Os policiais bateram à porta e foram atendidos pelo acusado, o qual, segundo eles, teria admitido a posse de drogas e autorizado a entrada.
Para o relator do habeas corpus, ministro Reynaldo Soares da Fonseca, os policiais "agiram sem mandado judicial e sem o amparo de denúncia ou de investigação prévia que os conduzisse a crer que naquele local havia tráfico de drogas".
O magistrado avaliou que o contexto era insuficiente para concluir que algum crime estaria em curso na residência. Além disso – prosseguiu –, a versão dos policiais sobre o consentimento do morador para a busca domiciliar era inverossímil, pois não foi comprovada em juízo.
Em 2019, a Sexta Turma anulou uma autorização judicial para busca e apreensão coletiva em residências de comunidades pobres do Rio de Janeiro. O colegiado observou que a ordem, genérica e indiscriminada, não identificava os nomes de investigados nem os endereços específicos que deveriam ser objeto da diligência policial.
Para o relator do HC 435.934, ministro Sebastião Reis Junior, "a carta branca à polícia é inadmissível, devendo-se respeitar os direitos individuais. A suspeita de que na comunidade existam criminosos e que crimes estejam sendo praticados diariamente, por si só, não autoriza que toda e qualquer residência do local seja objeto de busca e apreensão".
A suposta atitude suspeita – frequentemente apontada por policiais – está no centro de entendimentos importantes sobre o procedimento de revista pessoal. No RHC 158.580, a Sexta Turma decidiu que é ilegal a busca pessoal ou veicular, sem mandado judicial, motivada apenas pela impressão subjetiva da polícia sobre a aparência ou a atitude suspeita do indivíduo.
O colegiado considerou que, para fazer a busca pessoal, é preciso que a fundada suspeita prevista no artigo 244 do CPP seja descrita de modo objetivo e justificada por indícios de que o indivíduo esteja na posse de drogas, armas ou outros objetos ilícitos, evidenciando-se a urgência da diligência. Sem isso – explicou o relator, ministro Rogerio Schietti –, os agentes de segurança teriam um "salvo-conduto para abordagens e revistas exploratórias baseadas em ##suspeição## genérica", sem relação específica com a posse de itens ilícitos.
Schietti relatou ainda o
HC 774.140, que
invalidou provas e determinou o trancamento de ação penal contra um réu que foi alvo de busca pessoal e veicular apenas com base em antecedente criminal. A Sexta Turma decidiu que esse fato isolado – sem indícios concretos de que, naquele momento, o acusado transportasse drogas – não era suficiente para autorizar a ação policial.
Em relação a procedimentos adotados no rito do tribunal do júri, a Sexta Turma manifestou preocupação com o resguardo de direitos e garantias individuais ao fixar que
a pronúncia do réu não pode ocorrer apenas com base em informes policiais.
Segundo o relator, ministro Rogerio Schietti, a instrução na primeira fase do júri existe para que só sejam levados ao julgamento popular os casos em que houver comprovada materialidade do crime e indícios suficientes de autoria. Assim – explicou –, a decisão de pronúncia não pode ser apoiada apenas em indícios colhidos no inquérito, não confirmados em juízo (REsp 1.932.774).
As questões sociais que permeiam todos esses casos julgados pelo STJ revelam a importância de ações voltadas para promover a aproximação entre os agentes de segurança e a população.
No âmbito da União, o ano de 2023 teve a retomada do
Programa Nacional de Segurança com Cidadania (Pronasci), iniciativa do Ministério da Justiça e Segurança Pública que articula órgãos federais em cooperação com os demais entes federativos e outros setores da sociedade.
Os cinco eixos prioritários do programa trabalham ##prevenção##, controle e repressão da criminalidade, ao lado de políticas sociais e ações de proteção às vítimas da violência.
Segundo a coordenadora do programa, Tamires Sampaio, os eixos estão interconectados, sendo que dois deles se concentram no combate ao racismo e à violência contra as mulheres – temas com alguns dos maiores indicadores de violência do país. Os demais direcionam ações para territórios vulneráveis e promovem políticas de educação e trabalho para presos e egressos do sistema prisional, além de acolher familiares e vítimas de violência.
"As políticas públicas que envolvem o combate às desigualdades e a garantia de direitos também promovem a segurança pública. É necessário entender a importância do conjunto das ações: de um lado, o fortalecimento das forças de segurança, equipamento, inteligência etc; e de outro, as políticas públicas e a garantia do acesso à cidadania", declarou Sampaio.
"Uma das ações concretas são os cursos para agentes de segurança por meio de bolsa-formação, com aulas sobre letramento racial e o combate ao racismo na segurança pública. Além disso, temos ações de ##prevenção## à violência com foco em mulheres negras e jovens negros", detalhou.
Um desses cursos se chama
Formação de Multiplicadores – Polícia Antirracista e
teve início em 20 de novembro, Dia da Consciência Negra. Com o objetivo de desenvolver no agente de segurança a capacidade de combater o crime em contextos de vulnerabilidade social, com atenção a grupos étnico-raciais, a ação reuniu policiais civis e militares dos 26 estados e do Distrito Federal, que atuarão como replicadores em cursos locais.
Além do Pronasci, há outras iniciativas pelo Brasil que integram segurança pública e cidadania. Em Timon, quarta maior cidade do Maranhão, com cerca de 174 mil habitantes, o programa Capitães da Areia é uma referência por aproximar policiais do 11º Batalhão de Polícia Militar e jovens em cumprimento de medida socioeducativa em meio aberto e de semiliberdade.
Idealizador do programa, o juiz Simeão Pereira, da Vara da Infância e Juventude de Timon, contou que o programa se inspirou no romance de mesmo nome escrito por Jorge Amado. Para o magistrado, a realidade dos jovens retratados pelo autor na Bahia da década de 1930 se parece com aquela vivida, nos dias atuais, por menores infratores.
"O adolescente que pratica ato infracional é violentamente estigmatizado pela sociedade, não raro sendo apontado como o responsável pelos crescentes indicadores da violência, o que não corresponde à realidade", enfatizou.
A partir da articulação da vara da infância e da juventude, o grupo de policiais voluntários, em parceria com órgãos locais, incluindo a prefeitura, promove atividades desportivas e educacionais, além de reuniões com pais e responsáveis. O objetivo é enriquecer o cumprimento de medidas socioeducativas, engajando os jovens e contribuindo para melhorar a relação entre a Polícia Militar e a juventude.
Para Simeão Pereira, o reencontro entre policiais e adolescentes, já na execução da medida socioeducativa, permite um olhar empático: os policiais passam a conhecer o contexto sociofamiliar dos jovens, enquanto estes, que viam a instituição policial apenas como o braço armado do Estado, desenvolvem uma nova visão sobre os seus agentes.
"Com isso, desconstroem-se paradigmas, surge uma nova compreensão sobre a delinquência infantojuvenil e o esforço comunitário e institucional para a efetiva ressocialização do adolescente em conflito com a lei", resumiu o juiz.